iara acordou com muito sono naquela manhã fria de terça-feira. ou seria quarta? a mente ainda embotada pela noite mal dormida não soube precisar o dia da semana. mas também, depois de mais de cem dias nesse enclausuro, todos os dias parecem o mesmo, pensou enquanto olhava o bebê dormindo ao seu lado na cama. ele sempre vinha esquentar os pés quando o dia começava a amanhecer e o frio tomava conta do quarto que dividia com o irmão mais velho. bocejando, torceu para que o filho dormisse mais quinze minutos, assim teria tempo de tomar um banho decente. a água fria logo cedo não era prazerosa, mas ajudava a espantar o cansaço acumulado, visível na profundidade de suas olheiras roxas e no cabelo que não via xampu há uma semana.
conseguiu o banho, mas não com duração suficiente para lavar os cabelos. desligou a torneira quando ouviu os passinhos, ainda errantes, descerem da cama e irem até o banheiro procurá-la. saiu rápido, enrolada na toalha, deu um beijo no filho e ligou a tv no desenho animado que se repetia infinitamente há dias, enquanto ela cuidava do que precisava ser cuidado. vestiu o vestido estampado e puído de todo dia, aquele mesmo que, há alguns anos, a fazia se achar atraente e trazia de volta a autoestima estilhaçada depois do nascimento de sua primeira criança. a maternidade pode ser muito cruel com a autoestima de uma mulher, ela sempre repetia para as amigas que não eram mães, mas queriam ser. e logo se desculpava pelo conselho não solicitado. gostava muito de ser mãe, achava uma experiência importante para quem a desejava e não desestimulava quem quer que fosse, apesar de, às vezes, sugerir isso meio que sem querer. prendeu os cabelos num coque alto e foi preparar o café da manhã. ao buscar o bule em que fervia a água, viu seu reflexo no tampo de vidro do fogão e se lembrou de que, sim, andava fugindo do espelho ultimamente. essa fuga não era exatamente uma novidade, mas depois do segundo filho, mais madura e menos preocupada com o olhar alheio, acreditou ter feito as pazes com a própria imagem. detestava perceber que a trégua não era definitiva.
concentrou-se no monte de cabelo aninhado em sua cabeça e aquele reflexo a entristeceu. os cachos estavam opacos, embaraçados como nunca estiveram antes. tão emaranhados e cheios de nós, a ponto de precisarem ser, imagina só, penteados. há mais de quinze anos ela não tinha o hábito de pentear-se e achava essa decisão uma das mais acertadas de sua vida. orgulhava-se de dizer que não tinha nenhum pente em casa e que arrumava seus cachos apenas com a sabedoria e a delicadeza de seus dedos, e isso a fazia se sentir livre. uma liberdade conquistada arduamente, vitória importante na vida de uma mulher preta, que aprende a amar e cuidar de seus cabelos com prazer, enquanto o mundo incansável vocifera que aquele cabelo jamais será bonito. e agora essa liberdade estava por um fio. um não, muitos fios enredados numa desordem que externava não só a real falta de tempo para si mesma, mas era uma imagem fiel do embaralho das emoções que ocupavam o peito de iara, depois de mais de três meses isolada de tudo e mergulhada em si.
em alguns momentos, sentia culpa por gastar horas do dia pensando no assunto, enquanto o mundo, devorado por um vírus, era confrontado com a sua finitude. milhares de pessoas morrendo e há dias em que eu só penso nos meus cabelos. que criatura fútil eu sou, afirmava impiedosa a si mesma, sem coragem de olhar-se nos olhos. os espelhos da casa tinham mesmo virado verdadeiras armadilhas e ela os evitava decididamente. no entanto, apesar de amargar essa sensação de alheamento que socava a boca de seu estômago, também se afetava por uma intuição fortíssima de que preocupar-se com os seus cabelos era uma estratégia de sobrevivência para atravessar as turbulências dos dias. manter-se sã – ou quase isso – não vinha sendo exatamente simples no ano de 2020.
ao decidir comprar um pente, combinou consigo mesma que a tentativa seria estabelecer outra relação com aquele objeto, tão familiar quanto estranho. a verdade é que iara estava cansada de tanto embate, o pente não precisava ser seu inimigo. foi até a farmácia mais perto de casa e escolheu um pente simples, de madeira. pentes de madeira eram uma lembrança vívida de sua mãe, de quem herdou os cabelos crespos, os olhos que sorriem junto com a boca e a sabedoria de movimentar-se quando o lugar em que se encontra não mais comporta a sua fluidez. aprendeu com a mãe a escorrer pelos dedos feito memória, escapar pelas frestas como desejo.
passou a usar o pente sempre que tinha a chance de lavar os cabelos. a bem da verdade, não acontecia com muita frequência e justamente pela escassez da possibilidade é que esse se tornou o momento mais esperado de sua rotina. quando reluzia uma brecha de tempo no corriqueiro dos dias, ela logo se trancava no banheiro, sem dar espaço a interrupções. ali, sozinha, sentada no chão, debaixo do chuveiro ligado, lavava os cabelos com cuidado, na água morna que amortecia os sentidos, sentindo a espuma deslizar pelo meio de suas costas. depois, condicionava os fios com calma, cada mecha acariciada dezenas de vezes pelas mãos macias e pacientes. e, então, começava a pentear-se, encostando devagar os dentes do pente no couro cabeludo, deslizando pelo comprimento dos fios, até encontrar o vazio. por instantes, alheia ao fim do mundo, voltava e repetia o movimento de infinitos afagos em si mesma, transmutando o que outrora havia sido dor e luta em afeto e gozo, até encharcada, derramar-se água.