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.: Mãe: A ruptura e o vínculo
Há muitos anos, uma tia ardilosamente me contou, em tom de segredo familiar devastador, que minha mãe, quando grávida de mim, havia contemplado a possibilidade de fazer um aborto. A ideia de interromper a gestação, depois eu descobri, circulou por muitas mentes envolvidas no evento, mas sua autoria não foi reclamada por ninguém. O inconfessável, o ato monstruoso! Havia, no entanto, um outro lado dessa história que a ninguém, nem mesmo a minha mãe, ocorreu ponderar: quando descobriu a gestação que culminaria em meu nascimento, ela tinha apenas dezesseis anos.
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.: Fímbria
Sentadas numas cadeiras azuis de plástico, uma mulher grávida e sua mãe aguardam o chamado do médico. A mulher conserva algo de menina: seu jeito, a roupa rosa bebê com dourado. Está aérea, quase fora de si. A mãe coleciona rugas e o cansaço de uma segunda – talvez terceira – gravidez; zela de perto a filha. Há algo de mãe na menina, ainda que seja apenas um sopro: um murmúrio baixo, distante e incessante em seus ouvidos, que a distrai a todo momento. Penso na minha mãe, que não sabe que estou ali esperando uma consulta também, mas uma consulta diferente. Ou sou eu que me sinto diferente, muito distante daquelas mulheres na minha frente. Eu também tenho medo. E o mesmo nervosismo.
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.: Falta hereditária
Há um mal que assola a minha família, entre mães, filhas e hospitais psiquiátricos. Minha avó se internou num hospício nos anos 1980. Até hoje não se fala disso, não sabemos por quê. Ela não foi boa mãe: uma vez arremessou um sapato de salto na testa da filha. Levaram minha mãe criança para um hospital. Na época, não havia ECA. Inventaram uma desculpa e passou batido. Minha mãe sempre chora e diz que não teve amor de mãe. Acho que minha avó não aprendeu a amar os filhos, só os teve.
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.: Gesto de gravidade [fragmento]
as mãos são ímãs
deslizam magnéticas
até o ventre
gesto de gravidadeali
um nadinha de toneladas
a consciência da vida pesa -
.: Letras
desejo escrever
me falta coragem de encarar o ritual do desencontro
um mar de recuos
receio e deixo o lápis mudo
o papel impuro
tenho medo de que veja nas frestas de ínfimos abismos
o que do outro não se deve ver -
.: Minha mãe
Não me ensinaram a falar
deram-me de pedir sem vestes.
Não me ensinaram a fugir
deram-me de ter rédeas caídas.
Não me ensinaram a escrever
deram-me de talhar uma tábua sobre o rio. -
.: A filha
Chora
Pede colo para a mãe
O telefone toca
O leite derrama
A menina febril
Na carteira não há dinheiro
Onde está o papai?
Pergunta a filha
Não pôde vir, diz a mãe -
.: Oração
Que meu corpo se livre do peso da impossibilidade de atender ao desejo do outro.
Que meus braços abracem o mundo e por enquanto alcancem um pouco, mas apenas um pouco além do que eu acreditava ser possível.
Que minhas mãos teçam, amassem, moldem, pintem, escrevam, que meus dedos apontem, entrelacem.
Que meus olhos repousem fechados, mas que abertos estejam atentos para o céu, para os próprios movimentos, para outros olhares… bem fundo, entregues.
Que minha boca profira o que for necessário para que eu não me engasgue com as palavras, mas que cuide de quem ouve.
Que meus ouvidos ouçam tudo, mas que escutem com cuidado, e que venha para o peito o que é meu. -
.: Niketche, uma história de poligamia [fragmento]
E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa – sua esposa – intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção de uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.