fertilidade amizade choro amadurecimento desamparo cotidiano artes visuais adolescência abuso apego envelhecimento câncer criança desespero diário corpo exílio rotina pertencimento crueldade contínua carta dinheiro angústia lgbtqia+ orgasmo aprendizado dança independência escravidão menstruação transgeneridade ressentimento culpa herança desamor palavra dissidente relacionamento cansaço línguamãe leitura irmãos sonho psicanálise intimidade descendência dupla-maternidade isolamento lei pandemia autocuidado sexualidade pânico medicina fome linguagem violência racismo ruptura enlouquecimento umbanda dissidência acolhimento conflito oração família coragem aborto escrita-dos-dias tradição desilusão silêncio ausência raiva vínculo fecundação individualidade hormônios lesbianidade puerpério poesia marginal infância cuidado amas-de-leite empoderamento sexo encantamento desejar-é-revide distância tarefa candomblé ritual com-a-maré saúde mental diversão rigidez segundo filho mãe-solo saudade colo sagrado desencontro migração subjetividade desencanto abandono ciúme masturbação casamento brincadeira mulher-negra expectativa alegria cozinha solidão transição identidade acidente escuta marginália insegurança depressão loucura fragilidade não-maternidade velhice utopia nascimento falta afeto trabalho amamentação educação criação feminismo doença futuro parto gênero prazer casa deficiência travesti livro escrita gravidez segredo submissão amor vícios tempo terra-grávida hospital separação mãe-terra sexismo contracepção humilhação ancestralidade luta avó babás inter-racialidade domésticas desejo conexão morte confinamento resistência comemoração luto exaustão medo frustração guarda-compartilhada suicídio aleitamento memória adoção desmistificação resiliência descoberta desmame dor prostituição coletividade dignidade
  • .: Expedição: nebulosa [fragmento]

    Expedição: nebulosa [fragmento]

    Marília Garcia
    N. 238

    arquivos cardiográficos
    1.
    o coração é o primeiro significante
    ritmado.               diz françoise dolto

    o perigo ao nascer é o silêncio:
    se o bebê não ouve o coração da mãe
    ele pode apagar

    Sem o som ritmado       diz ela
    o corpo desliga
    acaba

  • .: Feitiços: Fazer amor com árvores [fragmento]

    Da casa do ferreiro Karl Schmied, que ficava em uma colina fora dos muros da cidade, tinha-se uma bela vista da floresta situada no vale do rio. Helene adotou o nome do marido apenas formalmente, autodenominando-se Spalt como antes. A floresta a chamava dia e noite, enviando mensageiros à casa do ferreiro. Veados, javalis e castores chegavam às janelas e Helene os alimentava com o que podia, cuidando deles.

    E eles teriam vivido bem juntos, não fosse pela tristeza que Karl começou a sentir logo após o casamento, quando percebeu que não podia possuir sua bela e jovem esposa, porque seu pau falhava. Pau de que ele tanto se orgulhara até então.

  • .: Durante [fragmentos]

    Durante [fragmentos]

    Paloma Vidal
    N. 236

    6.12.10
    durante

    antes de me deitar, o ritual:
    as almofadas na vertical, paralelas o corpo,
    encolhido no canto oposto ao lado em que se
    encontra o berço dele.
    o berço, por sua vez, bem colado à parede.
    um banquinho, uma cadeira e o ventilador
    deveriam também bloquear minha passagem.
    tudo para impedir que durante o terror noturno
    eu chegue até ele e o levante.

  • .: A gorda [fragmento]

    A gorda [fragmento]

    Isabela Figueiredo
    N. 235

    Quando eu era pequena a mamã dizia-me, “és esquerda, és judia”. Eu gostava da mãe que me acossava, me tratava aos repelões, como um bicho que tem de ser domesticado. Gostava porque sim. Era a nossa guerra, o nosso amor ácido. Fazia a minha parte desobedecendo, ignorando proibições e regras, sendo esquerda, judia e tudo o que esperava de mim, não o desejando para mim. A partir do momento em que as Torres Gémeas e o papá implodiram, ou seja, em 2001, eu e a mamã ficámos presas nas nossas particulares cadeias de sangue e tempo, empedernidas nos nossos gumes, conhecendo-nos carnivoramente e incapazes de parar a luta. Não queremos viver assim, mas não sabemos viver de outra forma.

  • .: Garotas em tempos suspensos [fragmentos]

    Na idade na qual ser moça
    coincidia com a minha idade
    o aborto era sussurrado entre amigas
    e a pergunta milenar era
    qual caminho devo tomar para evitar o medo.
    Entre nossa geração e a de nossas mães
    um abismo de mútuos preconceitos
    bastou para que o único diálogo impossível,
    a afásica cumplicidade que nos unia,
    fosse não dizer nunca
    as palavras que não deviam ser ditas.

  • .: A insubmissa [fragmento]

    A insubmissa [fragmento]

    Cristina Peri Rossi
    N. 233

    Desde muito pequena tive que viver em estado de alerta. Eu era o soldado, a guarda-costas da minha mãe, e essa era uma tarefa monopolizadora e perigosa. Minha mãe era uma mulher assustada, carente de toda proteção que não fosse a minha, uma vez que seu marido – meu pai – era um homem arredio, violento, solitário e perigoso. Não sabia o que era pior: se os gritos do meu pai ou seus pesados, obscuros, tenebrosos silêncios. Eu também tinha medo dele, mas não falava. Não queria aumentar o da minha mãe. Os homens eram mais fortes, mais corpulentos. Tinham músculos verdadeiramente fortes que sobressaíam da roupa e a voz deles era mais grossa.

  • .: De quatro [fragmento]

    De quatro [fragmento]

    Miranda July
    N. 232

    Ele estava certo. Do que eu estava falando? Nossa antiga devoção tomou conta do meu coração de repente, uma queimação dolorosa. Por que eu estava arriscando meu companheiro de longa data, meu lar, por uma energia inominável?

    O pânico deu um salto na minha garganta.

    Imediatamente entendi seu ponto de vista, oitenta por cento dele, no total. Perdão, perdão, me perdoa, respondi, eu te amo, por favor, me perdoa, como se tentasse enrolar de volta um rolo inteiro de papel higiênico. Mas não tinha como voltar atrás; a merda estava feita.

  • .: Boulder [fragmento]

    Boulder [fragmento]

    Eva Baltasar
    N. 231

    Assim que inseminaram a Samsa, ela mudou. A sensação que eu tinha era de estranheza, uma estranheza nômade, nervosa. Vinha dela, a possuía ao mesmo tempo que a excedia, tornava-a radioativa, como se a tivessem inoculado nela, junto com aqueles cristais móveis de vida, aquela sopa desesperada recém-ativada. E o parto não mudou nada, nem a redimiu, nem a trouxe de volta. Nenhum passo para trás: a maternidade é a tatuagem que te fixa e que numera a vida em seu braço, a mancha que inibe sua liberdade.

  • .: A idade da discrição [fragmento]

    A idade da discrição [fragmento]

    Simone de Beauvoir
    N.230 | 2025

    De repente, ele apareceu; fico sempre surpresa ao encontrar em seu rosto, harmoniosamente fundidos, os traços tão dissemelhantes de minha mãe e de André. Abraçou-me com muita força, dizendo-me palavras alegres, e me abandonei à ternura do paletó de flanela contra meu rosto… Soltei-me para abraçar Irene; ela me sorria, com um sorriso tão gelado que me espantei de sentir junto a seus lábios uma face doce e quente. Irene. Sempre a esqueço: sempre ela está presente.