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.: Tese sobre uma domesticação [fragmento]
Na infância, o animal materno passava por cima da sua vida, ocupando tudo. Se ela pegasse um resfriado, a mãe fingia uma bronquite. Se ela sentia dor por causa de algum machucado, a mãe tinha enxaquecas apocalípticas. Se estivesse triste, sua mãe tomava três ou quatro pílulas para dormir e fingia seus pequenos suicídios. Quando o pai tentava um movimento para se aproximar da filha, a mãe impunha seus limites e os separava, com um talento para o veneno que teria deixado qualquer sicário sem palavras.
Essa era a única maternidade que a atriz conhecia. Um território de guerra com sua própria mãe. Lutar por algo no mundo que fosse só para ela, algo imaculado, que nunca tivesse sido tocado pela mãe.
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.: Cartas travessias
Mãe,
Desde que Miguel chegou, estou tomada pelas lembranças de nós duas. Vou revisitando detalhes, lacunas, silêncios. Outro dia me lembrei de quando meu irmão partiu e senti medo de que meu filho pudesse em algum momento também decidir que já não valia a pena ficar. Me acalmei ao lembrar que hoje você lê livros por prazer e por escolha e não mais para encontrar a exatidão das palavras.
Me lembrei de uma cena.
O relógio cuco avisava que já eram quinze horas e você continuava ali, sentada, lendo mais um livro. Já não sei quantos livros tinha lido desde que Gustavo decidiu que era hora de ir. -
.: Mãe: A ruptura e o vínculo
Há muitos anos, uma tia ardilosamente me contou, em tom de segredo familiar devastador, que minha mãe, quando grávida de mim, havia contemplado a possibilidade de fazer um aborto. A ideia de interromper a gestação, depois eu descobri, circulou por muitas mentes envolvidas no evento, mas sua autoria não foi reclamada por ninguém. O inconfessável, o ato monstruoso! Havia, no entanto, um outro lado dessa história que a ninguém, nem mesmo a minha mãe, ocorreu ponderar: quando descobriu a gestação que culminaria em meu nascimento, ela tinha apenas dezesseis anos.
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.: Fímbria
Sentadas numas cadeiras azuis de plástico, uma mulher grávida e sua mãe aguardam o chamado do médico. A mulher conserva algo de menina: seu jeito, a roupa rosa bebê com dourado. Está aérea, quase fora de si. A mãe coleciona rugas e o cansaço de uma segunda – talvez terceira – gravidez; zela de perto a filha. Há algo de mãe na menina, ainda que seja apenas um sopro: um murmúrio baixo, distante e incessante em seus ouvidos, que a distrai a todo momento. Penso na minha mãe, que não sabe que estou ali esperando uma consulta também, mas uma consulta diferente. Ou sou eu que me sinto diferente, muito distante daquelas mulheres na minha frente. Eu também tenho medo. E o mesmo nervosismo.
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.: Falta hereditária
Há um mal que assola a minha família, entre mães, filhas e hospitais psiquiátricos. Minha avó se internou num hospício nos anos 1980. Até hoje não se fala disso, não sabemos por quê. Ela não foi boa mãe: uma vez arremessou um sapato de salto na testa da filha. Levaram minha mãe criança para um hospital. Na época, não havia ECA. Inventaram uma desculpa e passou batido. Minha mãe sempre chora e diz que não teve amor de mãe. Acho que minha avó não aprendeu a amar os filhos, só os teve.
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.: Gesto de gravidade [fragmento]
as mãos são ímãs
deslizam magnéticas
até o ventre
gesto de gravidadeali
um nadinha de toneladas
a consciência da vida pesa -
.: Letras
desejo escrever
me falta coragem de encarar o ritual do desencontro
um mar de recuos
receio e deixo o lápis mudo
o papel impuro
tenho medo de que veja nas frestas de ínfimos abismos
o que do outro não se deve ver -
.: Minha mãe
Não me ensinaram a falar
deram-me de pedir sem vestes.
Não me ensinaram a fugir
deram-me de ter rédeas caídas.
Não me ensinaram a escrever
deram-me de talhar uma tábua sobre o rio.