[125 | 2024]

Bebê tem fascinação por lâmpadas [fragmento]

Julia Raiz

Bebê tem fascinação por lâmpadas. Ri para o vidro ligado ou desligado. Ri para o bulbo. Ri para o fio solto pendulando, assoprado pelo ventilador. Nós acordamos de madrugada para alimentar Bebê e não vemos sua risada para a lâmpada no escuro, nem Bebê vê o que não vemos. Só olha para onde está a lâmpada, fria, apagada, vidro. Nós sabemos do vidro. Sabemos que ele é maleável feito lava quando quente e duro quando esfria, rápido. Sabemos que é possível usar duas tábuas e com firmeza achatar o vidro quente, transformá-lo numa coisa achatada que tem o mesmo aspecto do chiclete que meninos sem casa catam na rua para remascar.

A Assistente Social diz: esterilizem essas mulheres drogadas que trocam crianças por maços de cigarro. Ela nos conta da mulher que entrou pela porta gritando Tirem o monstro Tirem o monstro de dentro de mim.

Bebê não sabe a pronúncia ou o significado da palavra Monstro. Às vezes demoramos de propósito para levantar no meio da noite e alimentar Bebê só porque gostamos de ver sua boca arqueada, o lábio para baixo, um queixo derrotado. Gostamos de comprovar que Bebê precisa mais de nós do que precisa da lâmpada.

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Bebê dorme com o braço em 90° e o punho fechado como se gritasse POWER TO THE PEOPLE ou TODO O PODER AO POVO. No país em que Bebê nasceu não se fala inglês, não se fala iorubá, não se fala húngaro. No país onde Bebê nasceu não se fala. Bebê nasceu no país das crianças sem língua ou no país sem linguagem. Bebê tem língua e sua língua não é presa, nos informaram os exames dos primeiros dias que seu músculo está solto.

A língua de Bebê dá voltas, se descola da boca e flutua pelo hospital, acima da cabeça de bebês que não são Bebê, bebês que nasceram sem a ligação entre a bexiga e o rim, o umbigo e o rim, o esôfago e o rim e por isso precisam passar por delicadas cirurgias executadas por doutores cansados, auxiliados por enfermeiras exaustas. A mãe de um bebê que não é Bebê atravessa a rua, fica sentada no ponto de ônibus enquanto as pessoas sobem e descem.

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A Assistente Social diz Eu sou a Assistente Social. Vim aqui me defender.

Eu tenho um filho de 8 e um filho de 14 anos e até três anos atrás nós dormíamos todos no mesmo quarto. O quarto eu apelidava de albergue e dizia para o meu marido: você pode escolher o albergue ou o quarto ao lado, eu não ligo.

Eu ligo para as crianças. Eu cuido de crianças o dia todo. Eu vejo crianças olhando pro céu e chorando, esperando alguma tia trazer a papelada. Eu ligo. Crianças abandonadas amam e odeiam os papéis. Documentos são papéis que te botam pra lá ou pra cá. O apelido dos meus dois filhos é Polaco. Polaco 1 e Polaco 2. Moro no mesmo terreno da minha mãe, no puxadinho da parte de cima, e não posso contar com a minha sogra pra nada nada.

Eu vejo essas crackentas, eu falo assim porque quem usa crack é crackenta, Eu vejo essas crackentas chegarem aqui com essas crianças com cara de adulto e enfiarem chupeta na boca delas. Chupetas grossas de plástico rachado. Se você olhar bem para o perfil desses meninos, vai ver que eles já têm uma cara vidrada. Defendo a Esterilização. A Enfermeira da Maternidade Madre de Deus concorda comigo.

A Enfermeira me contou de um casal que chegou de chinelo de dedo e as coisas numa sacola plástica de mercado e o pai dizia onde come 8, come 9, come 10, come 11, come até 12 (12 parece que é o limite). Eu sou cheia, eu sou uma mulher grande, eu aproveito para dormir com meus filhos na cama enquanto eu posso, por isso eu não entendo o abandono, eu não entendo a lei, eu só entendo a agulha, só entendo o corte.

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Nos falamos através de Bebê como se Bebê fosse uma lasca de vidro, uma divisória transparente dentro de uma cela onde cumprimos nossa sentença. Não mencionamos os nossos nomes, só o de Bebê, e nos revezamos para perguntar e responder o que nos interessa, através de Bebê. Moramos juntos num lugar que chamam de vila, com outras famílias e outros bichos, ninguém acorda tanto durante a noite quanto nós. Não saímos do nosso lugar para nada, ainda assim sonhamos que estamos subindo os morros até a casa dos nossos amigos. Sonhamos com visitas e vizinhos que se cumprimentam de cara limpa.

Temos para registrar o crescimento de Bebê uma câmera velha que ainda funciona, mas os acessórios que vinham com ela foram jogados no lixo, por isso as fotos ficam lá dentro e não conseguimos acessá-las a não ser por um pequeno quadradinho riscado. Quando apertamos com rapidez a seta da direita colocamos as fotos em movimento e então temos um pequeno filme das caretas de Bebê, que chamamos, secretamente, de “Documentário Sobre O Que Mais Pensamos”.

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Bebê não olha para nós enquanto se alimenta. Quando procuramos seus olhos, Bebê vira o rosto, mantém a visão vidrada no que se passa atrás de nós. Quando cansamos de tentar atrair os olhos de Bebê, seguramos seu corpinho forte e balançamos Bebê forte demais. Bebê resiste ao choro, não quer dar o braço a torcer e, quando chegamos num ponto em que algo perigoso pode acontecer, Bebê vomita. Um jato branco sai pela boca e nariz de maneira tão feroz que seu rosto é um reflexo do nosso susto. Como evitar as lágrimas? Nós choramos. Bebê está mole, seus bracinhos pendem pra fora do colo. Bebê nos venceu novamente.