[N. 145 | 2025]

Santíssima

Paulliny Tort

Elas não têm com quem contar a não ser com as minhas mãos, essas palmas lisas de esfregar roupa, arear panela, carregar tinas, baldes, bacias, capinar terreiro, depenar galinha. Tenho gosto por lavar roupa, por revolver a terra e por tudo o que as minhas mãos apanham, vai ver por isso Deus me deu o conhecimento, a clareza para fazer pelas comadres o que ninguém faz. Ainda que me falte instrução e que a inteligência para os livros me seja curta, quase nenhuma, há coisas que sei. Há coisas que sei muito bem. O jeito com que se achega ao mato para catar erva-de-são-joão, catinga-de-mulata, folha de algodoeiro, isso eu sei. Como sei escutar os suspiros das comadres, as palavras de cansaço, os gritos delas nos descampados. Aqui nessas distâncias, as mulheres falamos com os passarinhos, com os bois, com as porcas, bichos de curral. As pessoas estão muito longe, à casa mais próxima não se chega sem caminhar um bocado, sem atravessar pedra, pó e estrada. Mas, quando as comadres chamam, eu vou. Não tem explicação, é uma quentura que sinto por dentro, bem aqui, no peito. A vó dizia que o nome da quentura era missão. Dizia também que essa foi a missão dela, uma missão que se fez minha.

As peregrinas somos olhos da Virgem Maria.

Comadre Vitória se casou muito cedo, menina ainda, e espera pela décima terceira cria atrás dos morros, no fundão do mato. A vó apanhou os primeiros, eu apanhei os mais moços, todos meninos, exército raquítico no fim do mundo. Os filhos, quase todos vivos, permanecem em torno do pai, tratam com ele da roça. São calados, têm olhos miúdos e vesgos, consumidos por uma tristeza que perpassa a todos naquela casa. O marido não gosta de mim, como não gostava da minha vó, a quem responsabiliza por uma sopa que Vitória aprontou anos atrás e que lhe causou vômitos e diarreias. O marido da Vitória andou dizendo que a vó apanhava criança como desculpa para entrar nas casas e enfiar rebeldia na cabeça das mulheres, a mando do diabo. Depois que a vó morreu, passou a dizer isso de mim. Já até me ameaçou com espingarda, o imundo. Eu estava levando uma canja de galinha gorda para a comadre em um dos seus muitos resguardos, numa panela enrolada em pano de prato branco, e ele não me deixou entrar, não me deixou vê-la. Da porta do casebre, apontou para mim a arma, disse coisas feias, inclusive da vó. Mas não me abalo com birra de homem, ainda mais de um beiçudo daqueles. Chamei um dos filhos crescidos que capinava ao lado da casa, entreguei para ele a canja e lhe fiz a bênção. O marido da Vitória deu um tiro para cima, as folhas nas árvores se agitaram, os passarinhos fugiram, o fundão do mato ficou mudo. Eu ri.

O Espírito Santo me investe de armas divinas.

Se a Vitória gritar nesse profundo, não há quem socorra. E é no silêncio desse nosso canto que o marido se fia e faz maldades com ela, com os filhos, com os cachorros, com o cavalo… Mas eu sou ouvido e mão, perna e boca, peito e pulmão, o que faz de mim um destino: meu corpo vai aonde a missão manda. Apanhar criança, cuidar de mulher parida é um encargo que recebi sem saber o motivo, é uma força que me empurra e, ainda que eu quisesse, não conseguiria escapar a essa força. Comadre Vitória deve estar de cinco meses e preciso saber da barriga, preciso saber se a criança se encontra no rumo certo. Não posso largar a pobre, ao menos isso tenho de fazer por ela. Bom mesmo seria que o homem não estivesse na casa em hora de minha visita, mas haverá jeito? Desconfio que a Vitória tenha botado alguma erva de purga na sopa do demônio, eu soube que ele teve uma diarreia sanguinolenta das piores. Há ervas que tanto podem ser remédios muito bons quanto venenos muito bravos, a diferença está na sabedoria de quem maneja.

O Deus-Pai me deu um grande coração.

O marido da Vitória diz que nenhuma curiosa presta. É verdade que essa não é uma opinião só dele, mas a maioria sabe que existem situações que ninguém mais resolve. Hoje mesmo apareceu essa moça da vila, pela hora do almoço. Entrou acanhada, roedora de unhas, e parou no batente. Fiquei olhando para aquele rosto pipocado de espinhas, para as mãos unidas em frente ao corpo, na altura do ventre, as unhas dos pés pintadas e descascadas apontando para fora da sandália, os joelhos tortos. Não precisou que ela dissesse palavra nem que eu perguntasse nada – as moças da vila raramente querem de mim outra coisa. Para todo o resto, elas têm os homens de branco, essas entidades que o povo respeita e adula, mesmo que tantos deles estejam mais para doutores da mula da ruça. Agora, quando brota barriga indesejada, elas arrumam carona com uma amiga discreta e mais vivida e escarafuncham pelos cerrados, para me encontrar no inabitado, nesta casinha de meia-água e chão batido. Gosto de barriga grande, redonda, cheia feito açude em época de chuva. Gosto de barriga de mulher gorda, que é naturalmente forte e larga. Porque, no fundo, eu gosto de qualquer barriga. Aos doze, já sabia palpar criança, endireitar, conversar com a santa. Ô, minha Nossa Senhora, desata logo esse nó! Tinha de ter atado antes, quando era donzela, agora não precisa! Falo bobagens assim quando quero que a mulher ria, que se despreocupe, que a barriga amoleça, mas a minha vó não gostava nada desses meus brinquedos e por isso dizia que eu não estava pronta para apanhar criança nenhuma. Coitada da vó. A primeira vez foi no quintal de casa, na manhã em que as contrações da minha mãe começaram. Faltavam dois meses para Tonho, meu irmão caçula, nascer, mas ele tinha pressa de conhecer as nossas pessoas. Escorregou para as minhas mãos antes do almoço, enquanto eu me ajoelhava na terra vermelha do quintal. Depois de Tonho, as crianças despencaram feito jambo nos meus braços. Agora quase não nasce gente por aqui, mas já andei com minha carroça pelas bibocas de todos esses morros, partejando em noites e dias infinitos. Quando uma criança não vingava, o que graças à Virgem sempre foi raro de me acontecer, sentia-me penosamente doída. Sofria e amparava o corpinho findo como quem segura um pássaro, mas compreendendo, cada vez mais, que a sorte da vida não sou eu quem dá ou tira. A mim, coube apenas guiar. E aprendi a lançar mão de conhecimentos antigos, conhecimentos que a vó me passou em segredo. Mandei que a moça da cidade tomasse assento e perguntei se estava decidida, porque tem feito que ninguém desfaz e depois não adianta arrepender. A moça disse que sentia vergonha, mas me pareceu decidida e entreguei o remédio que procurava. Não me dá gosto essa parte da missão, mas, tendo eu o conhecimento, como posso dizer não?

Os anjos me sopram conselhos.

Há mulher que não quer. Mas há muita mulher que quer e Deus não concede. Outras vezes, ele concede e depois tira. São propósitos que não compreendo nem ouso compreender. Nunca procuro motivos para as coisas serem do jeito que são; basta que sejam. Então, se estou diante de uma mulher que sofre, pego com ela e rezo uma Salve-Rainha. Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa. Eu, que caminho por longas estradas, que perco a vista nos morros, penso nas vidas que se movem na paisagem, nas dificuldades que elas passam, todas elas, e continuo a rezar, repetindo as palavras muito gastas da reza. Vida, doçura e esperança nossa, salve! Um pouco sem jeito, a moça da vila rezou comigo.

Sou humana, às vezes a minha fé duvida. Mas, nessas horas, vem a Virgem e me acende por dentro, transformando-me em uma lamparina que ela entrega às mulheres na escuridão. De resto, estou decidida, visitarei comadre Vitória antes do entardecer. No quinto mês, palpo a barriga e, havendo necessidade, endireito a criança dentro da mãe, assunto que o bronco do marido não entende. Mas eu vou. Ah, se vou! O povo da vila só aparece nesses ermos quando precisa da sabedoria dos antigos, não faz nada por nós, não nos ajuda em necessidade alguma. Os dias passam sem que ninguém se lembre que ainda estamos aqui, fomos esquecidas. Não fosse a Virgem, já teríamos desaparecido. É por isso que não abandono as comadres, sou o único socorro no mato. Dizem que Deus é amor, mas Deus é ira também e, qualquer dia, acerta aquele miserável. A mim, caberá somente levar a erva brava, para a ocasião em que a comadre Vitória tenha coragem de fazer uso.

E depois desse desterro,
Virgem Santa,
desse desatino,
tenha misericórdia das suas filhinhas,
e mostrai-nos o caminho.