No ano que vivo em Buenos Aires não nasce ninguém. É quando regresso que sou bafejada por sucessivas notícias de amigas que são agora mães, de amigos que são agora pais; de pequenas pessoas que vêm ao mundo com nomes escolhidos por elas e por eles. Nasce o Tomás, filho da Vera que nadou comigo nas piscinas do Restelo e que punha a equipa a rir com as suas momices; e a Olívia, filha da Carla, uma amiga de infância. Meses depois nasce o Afonso, filho do Paulo, com quem apanhei a minha primeira bebedeira, apesar da sensação de ter sido ela a apanhar-me. No verão seguinte, nascem os gémeos do outro Paulo, que hoje gere um pequeno império de call-centers mas que, na minha memória, será sempre um miúdo franzino a colecionar galhos na praceta. Depois, a Patrícia, cansada da monogamia em série e terminada mais uma relação, resolve ser mãe solteira. Escreve um longo e-mail aos mais próximos e pouco depois nasce a Helena, a miúda com mais tios e tias do bairro. O Vasco e o Rodolfo concretizam o sonho de ser pais com a ajuda de uma amiga e chega outro Tomás. A Irina e o Ricardo têm o Sebastião; a Mónica e o Gonçalo, o Lucas. A Raquel e o Pedro, que tinham passado um mês na minha casa em Berlim com a Mónica ainda bebé, têm uma segunda filha e chamam-lhe Joana.
Um por um, os amigos de Berlim caem também. Talvez tivesse acreditado que aquelas ruas fossem permanecer um reduto, que nenhum de nós fosse ceder. Crescer. Uma prolongada vernissage a ir noite adentro e vida afora. Caem pessoas com quem cresci, que não nasceram prontas para ser pais. Rapazes cuja ideia de felicidade era dar pontapés em jornais embolados com fita-cola. Raparigas que tinham sido meninas comigo; inocentes e medrosas, ou destemidas. Se as seguisse, estaria a ir atrás delas ou de mim?
Olhando-as vejo as miúdas de outrora. Ainda são manifestamente as minhas amigas mas agora escondem – ou melhor, revelam – uma faceta desconhecida. Ser mãe altera-as. Tornam-se indisponíveis; também vigorosas e cheias de energia. Passam a preferir programas com outros pais, um certo tipo de atividades – diurnas –, e a mostrar desinteresse por debates especulativos. Os meus dilemas soam frívolos perante o pragmatismo dos seus quotidianos. Emana delas um apaziguamento que me é alheio. O brilho puerperal que tomam aos filhos encandeia tecidos pendidos, corpos arredondados, a pele ressentida pela falta de sono. Estão mais bonitas. Parecem simultaneamente mais vivas que eu e mais perto da morte.
Chega a vez da Laura, que conheço desde os quinze anos. É das poucas de quem tinha ouvido uma hipótese distanciadora: “Era na boa não ser mãe, ‘tas a ver? Se, tipo, nunca acontecesse…”; malgrado o tom displicente com que tenta encobrir uma confusão similar à minha. Só se permitiu outro ónus ao sentir que eu não devolveria o costumeiro olhar reprovador ou o chorrilho de questões que equivalem todas a um, “como pensas então justificar a tua existência?”.
Em 2014, pouco antes do Natal, Laura convida-me para um café em que me revela que está grávida. Com um guloso cappuccino a esfriar diante de si, fala sem pausas, como se alguma vez tivéssemos feito um pacto de nos ampararmos na não maternidade. Explica que a relação pede, que é “orgânico, natural, inevitável”.
— Se analisas muito, bloqueias. Sabes, o truque é não pensar.
Apetece perguntar se é para emoldurar e fazer disso o mote – o truque é não pensar – mas não quero macular a sua alegria. É notória. A felicidade. O medo. Estendo a mão sobre ela: “Que bom”.
— Repara: vou sair disto mais madura. Vou conhecer a vida de uma perspectiva que nenhuma outra experiência permite. É certo que assusta mas vai ser tão avassalador que nem vou ter oportunidade de me arrepender. Vai ser maior que tudo. Muda o paradigma, percebes?
Diz isto sem respirar. E precisa de se repetir:
— Sabes que o cérebro das mulheres grávidas muda? Ouvi num podcast que há duas alturas em que o cérebro de uma mulher apaga sinapses e constrói novas, é na adolescência e quando está grávida, quer dizer, depois de ter um filho. Muda-te a cabeça, literalmente.
Eu rio:
— Uma lobotomia também.
— Lá estás tu! — E só nestes momentos me apercebo de que o meu não querer pode ser agora mais evidente.
Vejo surgir os grilhões: ela a descrever a armadilha com palavras melíferas; a predispor-se a gostar da armadilha: “Vou ser a pessoa mais importante de alguém e isso nunca poderá mudar!”. Ela a convencer-se, mas não a mim.
Depois do António nascer, vou vê-los ao primeiro ensejo. O pai está ausente em trabalho e a Laura encontro-a descuidada, com a pele macilenta e olheiras; mas vivaz e estranhamente alterada.
— Vieste na hora certa, ele adormeceu.
Descalço-me e sigo-a em pontas de pés, imprecando os estalidos da madeira. Felizmente abraçar é mudo. Sussurro novidades sumárias de quem não se tem visto. Irrompe o choro do bebé vindo do fundo de um longo corredor. É impressionante a força com que chega, considerando que estamos no extremo oposto da casa. Laura some-se num ápice. Fico ali, sozinha, a afagar o sofá de pergamoide e a tentar abstrair-me do berreiro. Esta divisão incorpora sala de jantar e de estar e, pela papelada sobre a mesa, escritório. Foi composta sem fausto mas também sem aqueles móveis de gosto genérico que se encontram hoje em qualquer casa. As compridas estantes foram feitas à medida. O aparador de madeira pode ter sido herdado. Os candeeiros de cerâmica trouxeram-no de alguma viagem. Marrocos, diria. Reparo num relógio de corda antigo que, não obstante atrasado, trabalha: quanto pode Laura demorar? Levanto-me. Sinto-me desamparada.
Ela regressa antes de me decidir a ir ter com eles. Com o bebé ao colo, ambos os rostos cravados de lágrimas.
— É assim a noite inteira. Todas as noites. Estou tão cansada.
Quero muito não ter de estar ali naquele momento. Soa a campainha. O som silencia o bebé.
— São as compras. Olhas por ele um segundo?
Passa-mo. As tréguas duram os instantes necessários para o pequeno António perceber se pode confiar no colo desconhecido. A rejeição vem num brado que me parece ainda mais pujante que os anteriores. Sinto o frémito daquele corpo mínimo junto do meu. Como pode produzir um bramido tão temível? Imito os movimentos da minha amiga relentados pela insegurança. Acalmo-me, na tentativa de que o meu colo quiescente o tome e o envolva; que o obrigue a pacificar. O seu choro só ganha fúria.
Laura tira-mo dos braços. Desaparece com ele corredor fora, mas o choro não. Para me recompor, agarro nos sacos das compras deixados à entrada e carrego-os, em levas, para a cozinha. Começo por pôr os perecíveis no frigorífico. Tento decifrar a lógica implícita que organiza cada casa, cada cozinha. Descubro ou improviso onde guardar os cereais, os frutos secos, os legumes, as papas, o papel higiénico, os pacotes de leite, as muitas fraldas, duas garrafas de vinho, mais fraldas; cotonetes, algodão, compressas esterilizadas, pó de talco, várias bisnagas de halibut, toalhetes húmidos, paninhos vários, creme infantil, loção infantil, tudo infantil. As minhas mãos ainda tremem. O António ainda chora.
Decido ir embora. O que presenciei é íntimo, não me diz respeito e, ainda assim, põe-me em causa. Agarro nas minhas coisas. Fico em pé, colada à porta, à espera. Quando Laura volta, trá-lo ao colo, já só mimoso e flente, aninhado no pescoço dela, a mão pequenina enrolada numa mecha do cabelo da mãe.
— Já vais?! — pergunta, aturdida, os olhos muito abertos.
Tenho o casaco vestido, calço-me e seguro o trinco da porta. Desculpo-me, saio. A cada lanço de escada me sinto pior. Que atitude péssima. Mas não consigo voltar atrás nem lhe conseguirei dizer nada durante muito tempo.
É por esta altura que o famigerado “então e tu” muda de direção. Deixa de ser apenas uma indagação com raiz na curiosidade alheia e torna-se âmago: Então e eu? O que fazer quando passaste os trinta e em redor não fazem senão ter filhos?