Na marginal
Comecei a pensar na maternidade e na solidão da minha mãe numa segunda à noite. Ela tem mãe, irmã e sobrinhos, e ainda assim há momentos em que ela não escapa ao abandono que vem junto com o papel de mãe solo – um deles se apresentou logo no início desta semana, às 22h50, envolvendo um carro com documento vencido e uma blitz a dez minutos de casa.
Ela sai do carro, como o policial pede, e sei que não quer chorar na frente de dois dos três filhos e do filho de uma amiga, para quem dava carona. Ela havia nos buscado na faculdade, depois de um dia interminável de trabalho e preocupação com a terceira criança que ficara a tarde inteira sozinha em casa. Ainda havia tarefas a serem feitas e a casa estava tão perto. Que diferença a preocupação de uma mãe faz para um homem de farda?
“Tem que regularizar, senhora. E vamos rebocar o carro” – ele disse assim, com a caneta na mão e sem olhar para ela. Afinal, era tão simples, só regularizar. É apenas dinheiro, ela não tem? O documento estava vencido, mas as quatro mensalidades atrasadas da escola estavam finalmente pagas, e o menino nem estudava mais lá. Não é tão simples e as escolhas não eram fáceis. E como sair dali sem o carro? Não é possível ligar para a mãe, já idosa, e a irmã não atende, são onze horas da noite, está exausta, dormindo. Quem sobra? O policial se afasta indiferente, talvez até entediado. A mãe solo é solitária e precisa dar conta, e isso não é da conta dele.
Ana tentou dar conta de tudo com seus “oito tentáculos obstinados”, é o que diz em minha apostila xerocada, em minha mochila, no meu colo, no banco de trás do carro com o documento vencido. Em Não fossem as sílabas de sábado, a personagem narra como tenta atravessar um luto cuidando de uma recém-nascida e de seu próprio corpo puérpero – e todas as variáveis que ambos demandam – sozinha. A sugestão de contratar uma babá para ajudar a mãe solo é recebida por ela com a repulsa comum de mães exaustas que veem ajuda como derrota: “mas eu não queria nenhuma babá, uma babá seria o retrato público da minha ineficiência, […] uma mulher que eu ficaria olhando sabendo que era uma mulher que tinha dado conta de tudo, […] uma mulher guerreiríssima extraordinária […].”
Para Ana e para Sandra, é preciso dar conta, a solidão materna é tão comum que vira praxe, vira o padrão. É esperado que as mulheres administrem sozinhas a casa, os filhos, as atividades da escola e extracurriculares e que o façam de maneira eficiente e agradecida ao marido que está fora, desbravando o mundo e trazendo dinheiro para casa. E, quando se trata de uma mãe solo, como a minha, que observo pela janela do carro, ela deve fazer tudo isso e ainda prover o sustento financeiro da família. O que é uma responsabilidade a mais nessa torre de babel de sobrecargas? Se tiver uma babá é porque falhou. Ela tem que carregar o fardo e sofrimento sozinha porque, aparentemente, isso é ser uma mãe. Quantos milhares de mulheres maternam sozinhas sem nenhum tipo de apoio e com muitas dificuldades? E, se tantas conseguem, por que não ela? É o que Ana parece se perguntar, e talvez minha mãe também. Mas essas mulheres guerreiras e extraordinárias se sentem assim tão poderosas, heroínas?
Penso também no desabafo de uma mãe de uma criança atípica na “Carta de uma mãe que não quer mais”. Com o carro parado, o policial indiferente e minha mãe buscando uma solução, eu folheio os textos da apostila em minha mente. Neste relato anônimo, a mãe descreve uma rotina corrida na qual mal tem tempo de, entre seus afazeres, escrever um relato. Quando escreve, o que essa mãe solo “guerreira” tem a dizer começa pela surpresa de ser escutada e pela confissão de que “dar conta de tudo” é mais uma necessidade do que uma habilidade: “Por que, então, foi tão sofrido para mim pensar neste texto? Porque foi a primeira vez que parei para pensar em mim, que me perguntaram sobre mim. […] Sim, eu amo as minhas filhas demais. Só não queria ser mãe delas. Cuido muito bem delas, sim. Só não gosto de fazer isso, de tomar as decisões, de vê-las definhar e não saber o que fazer. […] Essa carga vai pesar em mim até o fim desta vida.”
Daniela Pasik também escreve sobre isso em “Quando acordou, a família monomarental ainda estava ali”. É também uma mãe solo, chefe de uma família monomarental, como ela mesma coloca, e em seu texto ela alterna entre a realidade do seu maternar solitário e um sonho no qual o pai de seu filho ainda está vivo e eles conseguem exercer uma coparentalidade: “No sonho nós nos separávamos em bons termos. Havia um abraço, uma organização das tarefas relativas ao cuidado do menino, uma divisão das responsabilidades econômicas e muito alívio. Era um sonho, claro, um delírio, como quem sonha que voa. […] No sonho, o pai do meu filho compartilhava comigo a angústia sobre o que fazer com o nosso menino agora. […] Experimentei tanta segurança e apoio que me senti muito triste ao acordar. Eu crio sozinha.” O sonho de Pasik não é sobre reatar o relacionamento amoroso com o pai de seu filho, e sim sobre compartilhar as tarefas de criar um filho. Seu desejo, sua fantasia, é poder dividir com alguém a criação do menino, e aliviar-se: se a autora do relato anônimo anterior tivesse a oportunidade de compartilhar essas responsabilidades, a maternidade possivelmente teria sido menos cruel para ela.
Desperto novamente no banco traseiro do carro. É preciso descer e juntar nossos pertences porque o policial vai chamar o guincho. Minha mãe fala para o filho de sua amiga chamar os seus pais. Eles chegam, levam seu filho e o meu irmão, a pedido de minha mãe. Diz para eu ir com eles também, mas não posso abandoná-la, então fico. Esperamos por meia hora antes que um dos homens lembre de nos avisar que não precisamos ficar ali. Tento pedir um uber ou táxi para irmos embora, porém não há nada na rua além dos policiais da blitz (que, depois de barrarem minha mãe, se deram por satisfeitos e se puseram a conversar, mal olhando para a rua), eu, minha mãe e nosso carro irregular. Chego a pensar que vão nos oferecer carona, mas não oferecem. Então atravessamos duas marginais e um viaduto em silêncio. Não sei o que dizer para consolar minha mãe, apenas andamos. É meia-noite quando entramos em casa e ela ainda vai checar o terceiro filho, lavar roupa e adiantar o almoço do dia seguinte. O carro ficou na marginal, mas as mensalidades da escola tinham sido pagas. Esse foi um dos dias em que minha mãe não deu conta de tudo e a ouvi chorar no banho.