[N.203 | 2025]

Desejar é revide

Marina Apolinário

Penso sobre corpo. Penso sobre o corpo nas minhas lembranças de infância – de quando ele brincava dócil na casa patroa, do choro das estrias por ter crescido demais, do incômodo pela chegada dos peitos que atraíam olhares, do olhar torto quando cheguei nos brancos e contrastei minha pele. Penso sobre corpo, no pudor da igreja e na dureza de aprender a escondê-lo atrás de um trabalho em caso de dor. Uma vez, eu ainda menina, me deram um prestobarba e me pediram para raspar os pelos do sovaco que começavam a despontar. Essa senhora me dava a navalha e dizia: “gente da sua cor pode feder com esses cabelos”.

Apesar de todas as caricaturas que podem acometer um corpo negro de peitos fartos e ancas largas, sempre me atentei ao que ele poderia desejar.

Eu tinha 23 anos, estava na graduação e, em alguma disciplina de antropologia, me encontrei com Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. É uma etnografia importante e bem escrita. Descobri no texto as malditas palavras “branca pra casar, mulata pra fuder e negra para trabalhar”. Recordo de sentir raiva, uma raiva que fazia meu corpo tremer. Lembro de olhar ao redor e observar todas as mulheres brancas da turma e sentir ainda mais raiva, de personificar a figura do autor e me sentir como se ele tivesse me roubado algo. O que pode um corpo negro para si? O que faz uma negra além de trabalhar e lambuzar a fome dos homens?

Raiva dói, mas movimenta. Li outras mulheres negras, que me contavam sobre o amor, sobre o samba, sobre a alegria, sobre psicanálise, sobre maternidade. Demorei meu olhar assistindo a corpos como o meu desejarem. Para algumas, sonhar custa mais caro. Talvez tenha sido isso que aquele texto queria me roubar, a possibilidade de imaginar que corpos como o meu desejam.

Esta curadoria é sobre mulheres que agora contam todas as alquimias de seus corpos. Negras que contam sobre maternidade, sobre amor, sobre perda, sobre o amor de outras, sobre a dança que o corpo faz apesar daquele mito de origem que o findou como objeto do desejo alheio.

Quando leio Conceição, me sinto na roda de amigas dela e de Juventina. Quando atravesso as palavras de Helena, sinto que é como se ela contasse àquele etnógrafo as coisas que textos como os dele nos trouxeram de herança. Na busca por novos textos, procurei o frescor da escrita, os territórios por onde corpos como o meu caminham e o desejo desponta. Corpos dourados no dendê, adocicados e densos, agora desejantes.