[N.219 | 2025]

Oração

Ceres Soares Bifano

Que meu corpo se livre do peso da impossibilidade de atender ao desejo do outro.
Que meus braços abracem o mundo e por enquanto alcancem um pouco, mas apenas um pouco além do que eu acreditava ser possível.
Que minhas mãos teçam, amassem, moldem, pintem, escrevam, que meus dedos apontem, entrelacem.
Que meus olhos repousem fechados, mas que abertos estejam atentos para o céu, para os próprios movimentos, para outros olhares… bem fundo, entregues.
Que minha boca profira o que for necessário para que eu não me engasgue com as palavras, mas que cuide de quem ouve.
Que meus ouvidos ouçam tudo, mas que escutem com cuidado, e que venha para o peito o que é meu.
Que o coração se deite no amor pra descansar, sabendo quando acordar e fazer um café, um feijão.
Que ao invés de me fixar na falta que é intrínseca à existência, que eu contemple o que preenche, o que transborda.
Que os tropeços e as surras permaneçam e adormeçam apenas enquanto acontecem. Revisitá-los será sempre aprendizado e cuidado, pois repetições também são oportunidades.
Que o andar seja macio, confortável e por caminhos afáveis; que a companhia seja sempre uma escolha.
Que seja leve esta vida, podendo também pesar vez ou outra.
Que a lembrança da efemeridade das coisas esteja sempre presente ou, melhor dizendo: que eu não me esqueça de que tudo passa.