Na ocasião do dia das mães de 2018, escrevi o texto a seguir para a coluna “Cores da Resistência”, que produzi, naquele ano, para a Rádio Terceiro Andar, rádio universitária vinculada ao curso de Comunicação Social da UFMG.
Há muitos anos, uma tia ardilosamente me contou, em tom de segredo familiar devastador, que minha mãe, quando grávida de mim, havia contemplado a possibilidade de fazer um aborto. A ideia de interromper a gestação, depois eu descobri, circulou por muitas mentes envolvidas no evento, mas sua autoria não foi reclamada por ninguém. O inconfessável, o ato monstruoso! Havia, no entanto, um outro lado dessa história que a ninguém, nem mesmo a minha mãe, ocorreu ponderar: quando descobriu a gestação que culminaria em meu nascimento, ela tinha apenas dezesseis anos.
Me custou muito tempo para compreender o peso desse detalhe na história de nossas vidas. Agora, com quase o dobro da idade que ela tinha ao engravidar, me salta aos olhos em minhas fotos de bebê uma menina que teve sua meninice tornada invisível. Eu a vejo, enfim: a criança que acabou de crescer sozinha e escondida atrás do nome “mãe”. Que minha existência tenha se dado e mesmo que eu aprecie a circunstância de existir – com todas suas deliciosas regalias e seus dissabores – não pode conflitar com a premissa ética de que a suspensão de um processo fisiológico, ali, seria a menos aberrante das possibilidades. O que ainda não é não pode prevalecer sobre o que é, concretamente. Minha mãe, menina, merecia mais que isso.
Durante o mês de maio, a exaltação da maternidade vaza por todos os poros de significado da nossa cultura. Na TV, uma mulher revela uma gravidez à sua mãe, que chora enquanto cozinha, para vender glutamato monossódico. No outdoor, uma jovem executiva atesta que o exercício do inescapável destino da mulher não é incompatível com as agonias de uma jornada de quatorze horas de trabalho, desde que você tenha o auxílio do aplicativo certo, no dispositivo certo – dispositivo, muitas vezes, materializado na figura de uma outra mulher com menor provimento de recursos. No rádio, um psicólogo convidado comenta a importância do cuidado materno para o desenvolvimento infantil e um comercial de cosméticos surge em seguida para lembrar que ser mãe não livra a mulher da função de enfeitar o mundo. Em toda novela, todo filme, há sempre uma mãe pronta para se imolar em louvor a seus filhos.
Lágrimas, abraços e uma melodia comovente ao fundo: não precisa de muito mais que isso para vender a ideia de que a vida de uma mulher só se dignifica quando devotada ao cuidado da posteridade. Os contos de fadas servem a essa outra grande narrativa, que transita pelas certezas da biologia e pelas imprecisões do fantástico. Ainda muito meninas, somos adestradas e talhadas para o exercício do ofício sagrado. Mulher, mesmo, é um estado provisório da matéria sendo preparada para se transfigurar em mãe. A mulher decidida a empregar sua capacidade criativa na gênese de outras novidades comete um grave delito de desobediência contra sua natureza. Um ventre que se recusa a germinar, no mundo dos homens, é desperdiçado. No mundo dos homens, mulher, assim como boa parte dos outros bichos domesticados, só tem valor na medida da serventia de suas partes.
Mas as misérias concretas das mães não cabem no sagrado ou na propaganda de perfume. A fome de quem espera que todos se sirvam e se alimenta das sobras; a exaustão de quem nunca mais dormiu; o medo de quem tem que priorizar a sobrevivência de um outro que é muito frágil; o luto de quem precisa aniquilar a própria identidade para gestar uma nova; a imensurável solidão do mergulho em tantos pormenores. São muitas as faltas que tecem a experiência tangível da maternidade. Claro: identificar os furos nesse roteiro não significa negar que existam alegrias, amores e grandes propósitos no exercício do cuidado com o mundo que virá. Trata-se, antes, de promover a desatinada ideia de que não há protagonista destinado a esse papel: o compromisso de zelar pelo futuro não foi firmado por nossos cromossomos. E a mãe efetiva, com suas cicatrizes dolorosas, com seus cansaços e suas tristezas, é uma imagem profana e perigosa. A mãe que deixa transparecer o humano espremido sob o peso do divino ofende mortalmente a sensibilidade dos homens, que preferem ser resguardados da revelação de que mulher alguma, nem mesmo suas santas mães, aprecia o encargo de servi-los.
Talvez tenha sido, justamente, a consciência de todo o universo colocado em suspensão pelo evento da minha existência que me levou a considerar com atenção os rios que correm nas profundezas das mulheres. Toda vida de mulher guarda um segredo público inconfessável, com potencial para devastar famílias: o caráter de humano que insiste em aparecer até mesmo nas mais convencidas de sua própria miudeza. O abominável e eficiente processo de pegar o bicho gente e ir desbastando sua humanidade aos poucos, para assim criar a menina, depois a mulher, depois a mãe, depois a velha – isso para as que têm sorte de não esbarrar na violência masculina no meio do caminho –, não dá conta de gastar tudo, sempre sobra um restinho de gente ali. É esse fragmento de humanidade que uma mulher reconhece na outra quando resolve dispensar suas máscaras. E é esse tantinho inarredável de gente que move as estruturas do mundo. Foi mãe, minha mãe, que mesmo menina me equipou com a competência para enxergar esse segredo e que me inspira todos os dias a olhá-lo nos olhos e a chamá-lo pelos seus muitos nomes.
Eu ainda não sabia, mas aquele seria meu último dia das mães com minha mãe. No ano seguinte, estava me preparando para ir visitá-la no hospital com minhas irmãs quando ligaram pedindo que fôssemos antes do horário de visitas. Ela havia sido encaminhada para o CTI na noite do sábado, após conseguirmos, com muito custo, uma transferência hospitalar, e em nossa última conversa, antes de deixá-la ali, avisei que a médica responsável havia prometido que nos daria uma autorização para que passássemos todo o domingo das mães com ela, desobedecendo os restritos horários de visitas daquele setor. Eu devia ter desconfiado da gravidade da situação, mas fui para casa tranquila. Na madrugada, ela sofreu paradas cardíacas e convulsões, foi intubada e os médicos não sabiam a extensão dos danos cerebrais, mas sabiam que todo o seu corpo estava falhando e que não havia mais esperança. Nos corredores a caminho do CTI, ainda sem saber que havíamos sido convocadas para nos despedir, passamos pela capela do hospital, que estava cheia de pessoas cantando Nossa Senhora, do Roberto Carlos, em homenagem às mães. Apenas alguns dias antes, enviei essa mesma música para ela para tentar confortar a tristeza e a desesperança que ela estava sentindo. Passamos o dia nos despedindo dela, que já estava inconsciente, mas segurou o quanto pôde para não morrer no domingo das mães. Ela partiu nas primeiras horas da segunda-feira.
Quando tudo isso aconteceu, eu já estava tentando engravidar. Tive a sorte de nunca engravidar em vacilos de prevenção quando jovem e de poder escolher se e quando teria filhos, mas não foi uma decisão tranquila. Passei muitos anos estudando os mecanismos da maternidade como imposição, controle e restrição na vida de mulheres, e isso tornou difícil bater o martelo se eu queria aquilo para mim, sabendo que não dá para ter o filho sem ter a mãe, e “mãe” não é um lugar social agradável de ocupar. Sempre gostei de crianças, mas sabia que isso não era suficiente, como também não era suficiente estar em um relacionamento estável e amoroso. Por muito tempo, senti que não tinha condições de fazer essa escolha tendo certeza de que seria uma escolha genuína. Mas, assim que concluí o mestrado, envolvida nos cuidados intensivos que a doença de mamãe nos demandava, decidi que estava pronta. É irônico que, depois de driblar com muita eficiência todo tipo de pressão pela maternidade que já me atingia até ali, eu não tenha percebido o efeito que ver a vida de minha mãe escorrer por entre nossos dedos teria. Engravidei um mês depois de sua morte, mas perdi aquela primeira gravidez e engravidei novamente no fim do ano, quando começaram a pipocar notícias a respeito de um novo vírus que causava preocupação na China.
Aquele texto que escrevi para a coluna tinha sido um exercício de pacificação de dores que carreguei por muito tempo. Se pessoas da família tentaram muitas vezes atribular nossa relação com a revelação da contemplação do aborto é porque sabiam que, para a criança, dói saber disso. Nossos pais foram amorosos conosco, mas nunca foi um segredo na família o fato de que a gravidez que resultou em mim não foi recebida como a melhor das notícias. Expressões fortes como “estragar a vida” e “perder a juventude” eram empregadas com o objetivo de fazer com que entendêssemos o tamanho do problema que é uma gravidez na adolescência. O objetivo de evitar que o mesmo acontecesse conosco foi alcançado com sucesso, mas ouvir esse tipo de coisa sendo aquela que abriu o caminho da “vida estragada” não foi exatamente fácil.
Não tendo nascido feminista, naquele momento eu provavelmente tinha uma opinião desinformada e conservadora a respeito do aborto. Lembro bem da primeira vez que li mães confessando no post de um blog, com imensa culpa, que, embora amassem seus filhos, odiavam a maternidade. Lembro de sentir choque, mas também um clarão: Aaaah agora entendi. Faz sentido. Depois, fui estudar teoria feminista, ouvir e ler mulheres, e passei a defender o aborto como um meio legítimo para interromper um processo fisiológico que, levado a termo, pode ser fonte de muito sofrimento não apenas para a mulher tornada mãe contra sua vontade, mas também para a criança. Nenhuma criança deveria sentir que só existe porque uma mulher foi punida, por ter vida sexual, com a impossibilidade de decidir o que acontece no próprio corpo.
Antes de publicar aquele texto que escrevi, enviei para minha mãe, pedindo sua autorização para publicar. Foi um jeito de dizer para ela: Eu entendo. Você fez o melhor que podia com as cartas que a vida te deu e a sociedade falhou com você antes de falhar comigo. Você merecia mais, merecia poder interromper a gravidez sem sentir que estaria cometendo um pecado capital e merecia também poder levar a gravidez adiante sem que isso implicasse tamanha redução das possibilidades para sua vida. No entanto, minhas dores continuaram a nublar minha visão e cheguei a confundir não ter sido desejada com não ter sido amada, o que nunca foi verdade. Sempre ouvi das mulheres da minha família aquela frase que diz que “ser mãe é padecer no paraíso”. Mas, de tanto colocar em questão o mito do amor materno e outros instrumentos da maternidade patriarcal, cheguei a pensar que só existia a parte do padecer – a parte do paraíso seria uma mentira da sociedade, algo de que as mães se deixariam convencer para sofrerem menos diante de tudo que a maternidade tira de suas vidas. E, num gesto de arrogância, cheguei a duvidar da veracidade do amor que minha mãe sempre expressou por nós. Nunca falei isso para ela, mas foi esse o jeito torto que arrumei para atenuar uma dor mal processada: racionalizar o vínculo a ponto de me convencer de que aquele amor não era real.
Assim, não estranhei quando fui alertada, ainda grávida, de que talvez não sentisse um amor imediato logo após o parto, de que é normal não sentir essa conexão tão rapidamente. Eu já esperava o amor ser construído na dinâmica da convivência, do cuidado, ao longo do tempo e me preparei para vivenciar o trabalho de parto como um evento fisiológico, não como um portal mágico que me faria experimentar o maior amor do mundo. Mas não foi isso o que aconteceu: no momento em que o menino saiu da barriga e veio para os meus braços, o amor me pegou de calça arriada, totalmente desprevenida, e implodiu a unidade da pessoa que fui até ali. Naquele instante, desentendi tudo que achei que soubesse. O amor foi imediato, um amor descomunal por aquela semente de futuro carregando em si todo o passado da espécie, um amor pelo desenrolar da vida sobre si mesma, que me estilhaçou e espalhou meus fragmentos pelo tempo. A ocitocina é um truque fantástico da natureza.
Depois disso, ficou impossível desprezar o vínculo. O amor que sinto pelo meu filho não é uma mentira dos homens. Também não é só o efeito de um hormônio poderoso atuando como uma droga no meu sistema, para me levar a protegê-lo sem nem pensar a respeito. A cada dia que tenho o privilégio de passar com ele, amo mais a pessoa que ele é, seu jeito, sua voz, suas vontades, seu potencial. Amo caminhar ao seu lado e também amo ver de relance, só às vezes, um pouquinho dos traços de minha mãe em seu rosto.
Não me entenda mal: criar uma criança é um trabalho tão exaustivo que pode ser enlouquecedor – e eu realmente quase chego a enlouquecer todos os dias – porque ninguém deveria ter que fazer isso sozinha, nem em dupla, nem mesmo com o amparo exclusivo da família ampliada na figura de avós e tios. Cuidar do futuro da espécie deveria ser uma responsabilidade de toda a coletividade humana. A maternidade, no contexto de uma sociedade organizada a partir do poder dos homens, configurada em termos que só funcionam para um punhado bem pequeno de gente, é vivida como fonte de opressão e de fato impõe barreiras para nosso potencial de realização individual. Mas a maternidade só existe como opressão porque é, também, fonte de um poder que só uma metade da humanidade tem a possibilidade de experimentar.
Entre as tantas limitações que a maternidade patriarcal impõe na vida de uma mulher, uma das mais ridículas é a expectativa de não sermos transformadas pela experiência de ter a linha da própria vida multiplicada. Qual mãe nunca ouviu coisas como: “Não é porque você teve filhos que deve se tornar outra pessoa”. Chega a ser engraçado como nosso senso de identidade pode ser tão corroído por uma lógica individualista que nem o fato de dividir o mesmo corpo com um novo ser humano por meses é suficiente para que se possa admitir que a gente se transforma continuamente no contato com o outro. A gente sempre se contamina no contato com o outro. O eu singular, autorrealizado, purificado, é uma ficção. E, enquanto todo vínculo tem poder para abalar as estruturas do eu, o vínculo mãe-filhote é capaz de dobrar o tempo, nos posicionando no meio do desenrolar da vida sobre si mesma, nos conectando, num fio umbilical, com a primeira e a última mãe a gerar vida, e com o primeiro e o último ser vivo a nascer no planeta.
Tive que passar por esse desdobramento para me dar conta de que, embora eu compartilhe com companheiras feministas a percepção dos mecanismos sociais cruéis que constroem a maternidade patriarcal e a revolta pelas condições concretas das vidas de mães e crianças, a alternativa coletiva não pode ser menosprezar esse poder que os homens fazem tanto para nos tomar. É preciso encontrar meios de defender a soberania reprodutiva de mulheres, sua autonomia decisória sobre o que acontece em seus ventres, defender o direito de recusar a maternidade, sem com isso desprezar a força do vínculo produzido por um corpo que se fragmenta, vínculo que é reforçado, cotidianamente, no exercício do cuidado mútuo. É preciso encontrar maneiras de defender direitos de mulheres individuais sem escorregar para a lógica – masculina – que posiciona o eu no umbigo do mundo. Porque todos nós nascemos, não acho que seja preciso ter filhos para enxergar a rede, para se ver dissolvido no tecido da vida, mas eu só fui capaz de entender quando minha singularidade se fragmentou fisicamente, desdobrando-se em uma outra pessoa que foi e sempre terá sido parte de mim, sangue do meu sangue, corpo do meu corpo. Assim como fui parte do corpo de minha mãe e consigo ver fragmentos dela em meu filho, sinalizando sua continuidade no desenrolar do tempo. Queria poder contar para ela que, agora sim, acho que entendo a expressão “padecer no paraíso”. O padecimento é real e profundo, e são necessários esforços coletivos imensos para libertar mães e crianças desse carrossel perverso, mas o paraíso pode ser traduzido na força de um amor que faz a morte empalidecer diante da largura da vida.