[N.229 | 2025]

Caverna e mar aberto: quatro poemas

Mônica de Aquino

Você arranca uma pequena flor
presente súbito que traz todos os dias
para nós

flor-quase-mato, flor-quase-esquecimento

viveria talvez algumas semanas
pendendo sobre a calçada

flor que não sabe os pormenores de que resulta
florir, como você não sabe os detalhes
de que resulta este dia, você
entrega a flor arrancada, você corre
para o quarto

e me deixa a enorme responsabilidade
cultivar a planta morta

Você atravessa, distraída

Você arranca uma pequena flor
presente súbito que traz todos os dias
para nós

flor-quase-mato, flor-quase-esquecimento

viveria talvez algumas semanas
pendendo sobre a calçada

flor que não sabe os pormenores de que resulta
florir, como você não sabe os detalhes
de que resulta este dia, você
entrega a flor arrancada, você corre
para o quarto

e me deixa a enorme responsabilidade
cultivar a planta morta


nossa existência
e me transforma, de novo, em útero.

dias de espiga vermelha e pólen
dias de cálice roxo e estio
dias amarelo-em-casulo
dias rosa-nascimento
dias brancos sombra
dias sépala

Coloco-as para secar, protejo da gata
e das formigas,

das intempéries da casa
desenho um jardim seco
e portátil

Preciso começar um herbário,
prensá-las nas páginas
úmidas

nesta página úmida
escrever com folhas e pétalas
entre raízes de palavras
que você atravessa

interrompe
outro dia que abre a corola

*

Exercício de arqueologia:
os brinquedos escondidos são fósseis

e cada gesto lembra outro,
instintivo

volto,
cada som guarda outro, ecoa
a humanidade inteira concentrada em você

pesquiso cada mínimo artifício
o que já sabe distinguir no quarto
e entender

é nossa caverna, o exterior aguarda
ainda para ser conquistado.

Como eram os primeiros bebês?
Também fantasiavam, como você faz agora
um osso, uma folha, um pequeno cadáver
de animal – brinquedos dispersos

a caverna era um útero seco, largo
perigoso

menos que a luz, menos que a rua
que leva ao passado
atravessa os milênios até aqui

nós duas nesta postura primitiva
corpo
corpo
corpo

todos os sentidos
aguçados

para te proteger.

*

255 batimentos por minuto
seu coração move o meu,
multiplicado.

Como houvesse dentro um gato
à espera,
sobreposto.

Como houvesse dentro um lobo
que transmuta o corpo
em noite e faro.

Como houvesse um pássaro
que inventa um ninho
sobre o voo.

170 vezes bate o seu coração-asa.

A ele minha pulsação se dobra,
somada mais uma vez a frequência.

Como houvesse um coração
em cada palavra.

Pulsa a placenta sob a máquina,
outro coração que te abriga.

Enquanto você guarda pai e mãe
nas batidas, duas vezes mais rápida
calcula:
o tempo do que renasce.

Somamos os três o coração
de uma ave.

Como um cão que a perseguisse
– e que a ela se soma –
enfrento todos os nomes

o ritmo inventa este jogo de encaixe
do som vem o rosto, a carne, os gestos.

Tão rápido o fluxo
preciso fazer-me pequena
para acompanhá-la
filha de novo, aguardo

Você tão frágil, peixe doméstico
dentro das margens-correntezas
da mãe-aquário-mar-aberto.

A vida se espalha no que é violência
e canto
sinto o coração oceânico do mundo
-baleia, lento, movendo as águas
o amor, as escolhas

tudo é espera
e só o seu coração acelera
o silêncio

O movimento é estreito
oposto:

enquanto você se acostuma
com o espaço
esqueço o contorno

um pulmão se alarga
falha o outro

tudo é exterior e íntimo
como você

que ainda não sabe o corpo
o nascimento, leio:
ainda é extensão
do que fui

e o que sou além
do parto
continuar grávida, terceiro trimestre
depois o segundo, o primeiro,
a concepção

De novo estar só.
O ventre se expande volta
até que outra memória nasça

vivê-la simultânea
a tudo o que perece:

cresce contra o tempo
até a raiz

onde salta, bruta, a flor
sem caule
ou promessa

talvez no mesmo momento
em que você começa
a se reconhecer.