Desde muito pequena tive que viver em estado de alerta. Eu era o soldado, a guarda-costas da minha mãe, e essa era uma tarefa monopolizadora e perigosa. Minha mãe era uma mulher assustada, carente de toda proteção que não fosse a minha, uma vez que seu marido – meu pai – era um homem arredio, violento, solitário e perigoso. Não sabia o que era pior: se os gritos do meu pai ou seus pesados, obscuros, tenebrosos silêncios. Eu também tinha medo dele, mas não falava. Não queria aumentar o da minha mãe. Os homens eram mais fortes, mais corpulentos. Tinham músculos verdadeiramente fortes que sobressaíam da roupa e a voz deles era mais grossa. Eles gostavam de demonstrar sua força, estavam orgulhosos de tê-la. Levantavam pesos, lutavam boxe, golpeavam a mesa com o punho, ameaçavam com a mão fechada, cuspiam na calçada e gritavam quando não gostavam de algo ou algo não era como eles queriam. As mulheres se calavam, não porque não tivessem nada a dizer, mas por medo. Além disso meu pai bebia muito, embora eu não o tivesse visto bêbado mais que um par de vezes, seu hálito não cheirasse a álcool e não tropeçasse, nem caísse, cambaleasse: só aquela permanente depressão, aquele silêncio assombroso, aquele não estar nunca presente, e, quando estava, ficava submerso em uma profunda indiferença ou em um ataque de violência. Mas minha mãe não se calava sempre, às vezes o repreendia. Reclamava que bebia demais, que tinha outras mulheres, que gastava o dinheiro em jogo ou que não ligava para os problemas da casa. O dinheiro não era suficiente para chegar ao fim do mês, coisa que para ele era completamente indiferente. Minha mãe costumava chorar no meu ombro, embora fossem ombros de uma menina pequena. Eu não necessitava perguntar por que chorava: era infeliz, sentia-se indefesa diante daquele homem arredio, violento e ameaçador. Quem poderia defendê-la senão eu? O resto da família preferia não intervir: ela tinha se casado com esse homem contra a vontade dos seus, de modo que agora se sentia humilhada, envergonhada do seu erro. Às vezes, diante das repreensões da minha mãe, ele optava por um silêncio grosseiro, vagamente ameaçador; outras, ao contrário, respondia com violência. Jogava uma cadeira na parede, golpeava a porta com o punho ou quebrava a mesa. Aterrorizada, minha mãe se calava. Então, eu intervinha. Tomava o lugar da minha mãe como quando uma leoa substitui a outra que está cansada durante a caça. Eu tinha muito medo, mas escondia. Era valente: enfrentava sozinha a brutalidade do meu pai, como um soldado assume o lugar do outro caído na trincheira. Minha intervenção exasperava ainda mais meu pai. Ele já não podia se conter, se tivesse evitado bater na minha mãe agora batia em mim. E eu revidava: à fúria viril do meu pai, respondia com uma fúria vingativa de filha: dava-lhe chutes, golpeava inutilmente seu torso robusto. Era um combate desigual, mas me permitia manter elevado o sentido do dever.
Minha mãe intervinha então para nos separar. Só muitos anos depois (quando eu já não era uma criança, mas continuava em estado de alerta) me lembraria de que meu pai jamais bateu na minha mãe, apesar das ameaças, e, no entanto, eu recebi várias surras no meio de discussões que não me diziam respeito. Me diziam respeito: tudo que afetasse minha mãe me dizia respeito. E eu estava orgulhosa do meu valor: nunca recuei diante do pai raivoso, nunca cedi ao verdadeiro terror que me causava, embora minhas mãos suassem copiosamente, minha garganta secasse e eu tremesse só de vê-lo.
Uma vez separados pela intervenção da minha mãe, nossa inimizade crescia. Meu pai não podia tolerar a insubmissão (a rebeldia) da filha, e esta não perdoava sua violência. Durante dias inteiros não nos falávamos, mas eu seguia alerta. Não descansava nunca. Só quando ele saía de casa eu abandonava um pouco a vigilância, mas com um obscuro temor. Às vezes eu voltava para casa com pressa temendo o pior: que meu pai tivesse discutido com minha mãe e batido nela durante minha ausência. A ansiedade me fazia imaginar vinganças terríveis: abandonaria meu pai, iria denunciá-lo para a polícia ou matá-lo. Qualquer uma dessas coisas era possível. Por sorte, ele passava pouco tempo em casa. Vinha ao meio-dia, antes que minha mãe saísse para trabalhar e não voltava até a noite. Jantava frugalmente (a bebida lhe tirava o apetite, embora não quisesse reconhecê-lo) e s enfiava na cama sem falar. Mas a experiência me indicava que a noite não era um período de descanso de jeito nenhum. As piores brigas aconteciam no interior do quarto e durante as longas, solitárias e obscuras horas da noite. Muitas vezes eu era despertada pelos gritos que saíam do quarto dos meus pais e então me punha mais alerta do que nunca. A porta do quarto estava fechada e eu imaginava o pior. O pior era que efetivamente meu pai batesse nela, que a matasse, como tantas vezes tinha ameaçado. E o pior para mim era não saber o que acontecia na escuridão, atrás da porta. Eu me equipei com uma faca de cozinha. Sem que ninguém da casa se desse conta, peguei uma longa e pontiaguda faca de açougueiro e a guardei embaixo do colchão. Quando o barulho da discussão no quarto principal me acordava (eu tinha o sono muito leve: estava sempre alerta, guardiã, vigilante), eu comprovava que efetivamente, a faca estava embaixo do colchão. Então, esperava. O volume das palavras, que meus pais lançavam entre si como dardos, não me permitia saber com exatidão a gravidade do conflito que estava acontecendo no interior do cômodo. Eu procurava afiar o ouvido, minha cabeça se estirava em direção ao quarto, mas eu não podia entender as palavras. Estava disposta a intervir (com a faca na mão, se fosse necessário), mas não sabia quando tinha que fazê-lo. Temia que, se esperasse demais, minha intervenção fosse inútil; temia chegar tarde, que algo irremediável acontecesse enquanto eu esperava. Por isso fiquei muito sensível aos detalhes, aprendi que se o volume das palavras com as quais discutiam não me permitia entendê-las, era possível que a discussão se prolongasse sem piorar. Outras vezes, no entanto, escutava algum insulto, uma voz furiosa do meu pai, e então, nervosa, agitada, me levantava da cama, brandia a faca, e me postava em silêncio diante da porta fechada. As vozes subiam de tom e os insultos se transformavam em juízos de valor. “Má esposa”, “mau pai”, “egoísta”, “bêbado”, “histérica”, “fracassado” eram palavras isoladas que eu podia entender de trás da porta, e calibrava sua densidade, sua capacidade de ofender, de ferir, para imaginar as possíveis reações. Não sabia dizer exatamente se “bêbado” era mais cruel que “fracassado” ou se “neurótica” era pior que “histérica”. A cada instante eu podia ter que tomar uma importante decisão. Devia irromper abruptamente no quarto dos meus pais ao escutar a palavra “asqueroso” pronunciada pela minha mãe, prevendo que meu pai, ao receber o insulto, lhe daria um soco violento? Se minha irrupção fosse precipitada, as coisas poderiam ficar piores. É possível que meu pai, ao me ver entrar com uma faca na mão, se exasperasse mais ainda e, em vez de se acalmar, aumentasse a violência. Também podia acontecer que minha abrupta irrupção no quarto tivesse o efeito de interromper a discussão e evitar um desenlace sangrento. Eram decisões graves para uma menina pequena, eu precisava tomá-las a cada instante, e todas elas tinham riscos muito difíceis de calcular.
Na maioria das vezes eu ficava aguardando na soleira da porta fechada, escutando atentamente. Se depois de um tempo de cochichos ininteligíveis se produzisse um silêncio, havia duas possibilidades: que a discussão tivesse cessado, por enquanto, ou que meu pai furioso se levantasse de súbito da cama, abrisse ruidosamente a porta do quarto e, atravessando a passos largos a sala, desaparecesse da casa, fundindo-se na noite escura. Tinha ocorrido muitas vezes. Não era necessário que eu me escondesse: meu pai abandonava o leito conjugal e a casa tão enfurecido, tão cego de raiva, que não me via na escuridão do batente e, se por acaso me visse, não dava a menor importância. Quando isso acontecia, eu corria pra fechar o ferrolho da porta da frente. Passava o ferrolho para que meu pai não voltasse e, se lhe ocorresse voltar, não pudesse entrar. Minha mãe me deixava fazer isso, não se opunha a esse gesto que interditava a casa para meu pai. Ele só voltou uma vez. Só uma vez fechei o ferrolho atrás dos passos furiosos do meu pai e, quando acreditei que o havia afugentado para sempre, ele voltou atrás, deu marcha à ré. Tentou abrir a porta com sua chave, mas a porta não cedeu: eu tinha passado a tranca. Golpeou-a, enfurecido, empurrou com o corpo todo, começou a dar chutes (sem falar, sem gritar: só o ruído surdo abrupto dos golpes contra a porta). Eu não estava disposta a abrir. Esperava que ele, cansado de chutar, decidisse ir embora. Esperava que considerasse que essa porta tinha se fechado definitivamente. Então, minha mãe se levantou da cama, atravessou de camisola o batente e me viu. Ela me olhou com certo ar de culpa e compreendi que ia ceder. Minha mãe sempre terminava cedendo porque era mais covarde que eu. Olhou fixo para a porta e eu me empenhei em fingir uma serenidade que não tinha.
— Abra a porta! — gritou meu pai, dirigindo-se certamente à minha mãe. Não podia ou não queria suspeitar que era eu quem estava atrás dela com uma determinação inabalável.
Ambas escutamos o grito, o chute na porta. Houve um silêncio contido, um silêncio longo, duro.
— É melhor você abrir — murmurou minha mãe, sem se aproximar da porta. Eu continuava em pé, olhando fixamente para o ferrolho de ferro que tinha conseguido fechar, não sem dificuldade, pelo peso.
— Abra logo essa porta! — voltou a gritar meu pai, convencido de que a resistência provinha da sua mulher.
Minha mãe suspirou. Um suspiro breve, resignado, de alguém que perdeu a esperança.
— É melhor você abrir — repetiu em voz baixa.
— Eu não o mandei sair, não tenho por que o deixar entrar — eu disse, resistindo sem sair do lugar. Gostava da ideia de que meu pai não pudesse voltar a entrar. O poder tinha trocado de lugar: agora era nosso. Se eu não abrisse, ele teria que se perder na intempérie, sozinho, na escuridão da noite; suplicaria muitas vezes, mas não poderia entrar à força: a porta era robusta demais e o ferrolho era de ferro. Então, esgotado de suplicar, teria que ir embora. Não me importava aonde fosse. E, se regressasse, voltaria a encontrar a porta fechada e nós duas dormindo, comodamente dormindo, sem sua presença perturbadora, ameaçadora, inquietante. Protegidas por uma tranca enferrujada.
Meu pai voltou a gritar. Era curioso que seguisse dando ordens do outro lado da porta fechada, porque eram ordens que precisavam de força agora que nós duas tínhamos recuperado o poder. Mas minha mãe titubeava.
— Você deveria abrir — ela sugeriu, ou suplicou? — Está muito tarde e ele não terá onde dormir. Além disso, está frio. — Agora minha mãe parecia me delegar o poder, concedê-lo a mim. No entanto, não era uma atribuição real. Certamente minha mãe sabia que eu sempre cumpria seu desejo oculto, seu desejo não declarado, e que ao sugerir (apenas sugerir) que tivesse pena dele estava confessando sua piedade.
— Ele mereceu — eu protestei, ainda. — Pode ir para um hotel — insisti.
— Não terá dinheiro para um hotel — respondeu minha mãe de maneira indiferente.
Era assim: meu pai, todo paixão. Minha mãe, mais fria, mais racional, mais objetiva. (“Você é igual ao seu pai”, me dizia às vezes, e eu odiava a semelhança. Como eu podia me parecer com o que mais detestava no mundo?)
— Que peça emprestado — respondi, punitiva. Não queria abrir o ferrolho. Sabia que se abrisse o ferrolho estaríamos perdidas. Outra vez o poder voltaria ao meu pai. E essa noite não (certamente estava cansado, todos estávamos cansados), mas outra noite qualquer a peça voltaria a se repetir.
— Está muito tarde — disse minha mãe. — Ele vai pegar uma pneumonia. É melhor você abrir.
Agora havia avançado uns passos em direção à porta e, embora eu estivesse certa de que ela não se aventuraria a abrir o ferrolho, também sabia que, se não aceitasse sua sugestão (“seu desejo é uma ordem”, mãe), a cumplicidade tácita que sempre nos unia seria rompida.
Então cabia a mim abrir o ferrolho e permitir que meu pai entrasse em casa e voltasse ao quarto que tinha abandonado em um ato de fúria. “Você tem certeza de que é isso que você quer?”, pensei, mas não disse. Não era o momento de perguntar à minha mãe seu verdadeiro desejo. Na verdade, esse momento não chegava nunca. Eu era a intérprete dos desejos da minha mãe e devia lê-los sem perguntar, sem questionar, sem discutir. Os desejos se interpretam e sem cumprem, mas não se discutem. Os vassalos não os discutem, e eu era a vassala da minha mãe, não do meu pai.
Desencantada, abri a porta. Meu pai estava do outro lado, calado, subitamente sereno, detido no momento em que recuperava o poder, mas inseguro dessa vez de como usá-lo. Talvez inconscientemente vacilasse entre exercê-lo de uma maneira brutal, como estava acostumado, ou conceder uma trégua. Em todas as guerras há tréguas.
Entrou sem me olhar e sem falar. Minha mãe, de costas, retornava ao seu quarto como uma atriz que desaparece da cena. Ele, mais calmo, também se dirigiu ao dormitório. Quando o vi fundir-se na escuridão do quarto, fechei a porta da frente, sem trancá-la. Então houve um longo, contínuo silêncio. Eu me senti mais sozinha que nunca. A porta fechada do aposento dos meus pais me isolava, me separava, mas eu estava cansada e me dirigi ao meu próprio quarto. Necessitava de um sono reparador, um sono sem cautela, sem vigília. Até a próxima noite em que tudo voltaria a se repetir como uma peça de teatro.