[N. 238]

Expedição: nebulosa [fragmento]

Marília Garcia

arquivos cardiográficos
1.
o coração é o primeiro significante
ritmado diz françoise dolto

o perigo ao nascer é o silêncio:
se o bebê não ouve o coração da mãe
ele pode apagar

Sem o som ritmado diz ela
o corpo desliga
acaba

só conservamos a noção
de existir graças a variações sensoriais
imperceptíveis: auditivas visuais
olfativas cutâneas
e barestésicas

quero contar o caso de sibila
menininha de 5 anos que não fala
em seus desenhos sibila só faz
buracos

2.
a analista conta que dormia nas sessões
com alguns pacientes ela virava pedra

um dia decide perguntar a eles
por que sentia tanto sono em sua
companhia achava estranho pois
quando dormia ela notava melhora significativa
neles

entendeu que ao dormir
ela virava objeto
e permitia aos pacientes
que fossem sujeitos e agissem livremente

entendeu que. ao dormir
ela podia ter acesso ao inconsciente deles

3.
as coisas que ela mais deseja
diz sussurrando ao ouvido
pede que eu me abaixe
e com a mão
em concha:
“mamãe, eu queria…”

como no filme
a personagem sobre no alto da montanha
e conta o segredo para
um buraco na pedra
aquilo que não consegue dizer
a ninguém

a mão cobre a fala
ela sussurra
e as palavras entram na pedra

4.
mas e o coração?
alguém me pergunta
você consegue ouvir daqui?

fecho os olhos
tento reconhecer
onde está o ritmo do começo?
não consigo lembrar
e não ouço nada
só imagino no escuro
o som piscando na tela

agora a mãe deitada na cama
olhando para o vazio

eu queria um som que pudesse
ser o último significante dela
sussurro ao ouvido
“estou aqui”
ela me diz
“planta”
“que planta, mãe?”
“a planta que está me mantendo” ela diz
e eu penso nas raízes

no dia seguinte
ela já não abre os olhos
então pergunto
bem baixinho
tudo bem?
ela responde
“você está me despedindo?”
eu fico em silêncio por um tempo e
depois digo
“pode ir”