Quando eu era pequena a mamã dizia-me, “és esquerda, és judia”. Eu gostava da mãe que me acossava, me tratava aos repelões, como um bicho que tem de ser domesticado. Gostava porque sim. Era a nossa guerra, o nosso amor ácido. Fazia a minha parte desobedecendo, ignorando proibições e regras, sendo esquerda, judia e tudo o que esperava de mim, não o desejando para mim. A partir do momento em que as Torres Gémeas e o papá implodiram, ou seja, em 2001, eu e a mamã ficámos presas nas nossas particulares cadeias de sangue e tempo, empedernidas nos nossos gumes, conhecendo-nos carnivoramente e incapazes de parar a luta. Não queremos viver assim, mas não sabemos viver de outra forma.
Sou adulta e a mamã diz, “não te cases, menina, os homens são putanheiros”. Diz, “isso dos filhos é mais um sonho teu: só dão trabalho, despesas, e preocupação, e com a tua idade já não terias paciência”. Diz, “não vistas a blusa branca; engorda-te mais. As saias não te favorecem. Que creme andas a pôr na cara? Estás com a pele numa miséria. Experimenta o creme Benamôr, que uso desde nova. Aclara a pele e tira as manchas. Ganhavas em passar uma pintura leve, uma base, um pó de arroz, um blush. Antigamente usavas um batonzinho, agora nem isso”. Pergunta se a menina lavou o carro, se entregou o IRS, se pagou o IMI, o seguro, se liquidou as quotas do condomínio e a mensalidade da mulher-a-dias, que por sua vez tem feito o serviço que lhe cabe, porque a casa tem de estar arrumada e decente para apresentar a quem chegue. A mamã tem o controlo e o poder.
“Eu, se fosse a ti, ia pentear-me, Maria Luísa”, aconselha.
“Já fui”, respondo-lhe cansada.
“Não parece. Tens o cabelo todo em pé.”
“Acabei de me pentear, mãe!”
“Mas vais para a rua com o cabelo nesse estado?!”, indigna-se.
“Porquê não me deixas?! A polícia prende-me?!”, irrito-me eu.
“Pareces uma maluca. Devias usar uma laca que te segurasse o cabelo, que é tão fino. É uma ponta para cada lado. Isso não tem jeito nenhum. Se fosse a ti cortava-o bem curtinho e deixava uma franjinha. A franja sempre te ficou bem.”
Suspiro. Desisto.
Pergunto-lhe, “tomaste o Lasix de manhã?”.
Não responde, como se lhe tivesse falado numa língua estrangeira.
“Hoje de manhã tomaste o diurético?”
Continua sem responder. Está surda ou faz que não ouve. Repito mais alto, quase gritando, sem paciência. “Mãe, tomaste hoje o remédio para mijar?”
“Tomei, tomei. Logo de manhã. Sempre. Todos os dias. Desde que o doutor Paulino mo receitou pela primeira vez. Nunca falha. Sempre de manhã. O comprimido pequenino?! Tomei. Nunca me esqueço. Oh, há anos! O doutor Paulino é um grande médico. Pois, ele é que mo receitou. O doutor tinha aquele bigode muito farfalhudo. Primeiro não gostava nada dele. Depois habituei-me.”
“Serve para veres que as pessoas estão para além do que aparentam”, ajuízo eu.
Ignora-me e continua. “Foi ele quem mo receitou, já nem sei há quantos anos. É um comprimido que nunca esqueço. Dou-me muito bem com ele. É o segundo que tomo. O primeiro é o do estômago, depois esse, a cortisona e o do coração. Logo de manhã. É o que me vale. Ai de mim se não os tomassse! Quem me vale é o doutor Paulino. Tomei, pois tomei. Agora o pior é os intestinos. O laxante já não resulta. Precisava que me trouxesses kiwis. Isso é que podia ajudar-me a descarregar.”
Tem dores em todos os ossos do corpo, no fígado, no estômago, nos intestinos e na cabeça. Não vê bem e ouve cada vez pior. Tem sonhos horríveis com corvos, ovos e penas, e tudo dá azar. “Penas trazem penas.” Reza e benze-se. Ouço a ladainha ao longo do dia. Não consegue andar. Perdeu o apetite. Come pouco. Acabou de saborear uma pescadinha cozida com batatas e cenouras. “Grande petisco, mas agora já nada me sabe bem; se fosse antigamente…” Pousa os talheres e pronuncia um sonoro e muito bem articulado, “pronto, finish”.
Lavo-lhe a dentadura, dou-lhe a sopa, o segundo prato, a sobremesa, faço-lhe o chá, o lanche e o jantar, pergunto-lhe o enredo das novelas, o teor do sermão do padre na missa, peço-lhe a lista dos almoços da semana, escuto pela milésima vez a lista dos achaques que a atormentam, conto-lhe histórias inofensivas: fechou aquele restaurante, fiz a mamografia, mas ainda não a fui buscar, a seca vai longa, não chove, o frio. Corto-lhe as unhas e o cabelo. Falo calmamente, como se tudo corresse sobre rodas bem oleadas, porque a mamã é uma criança com birras, que merece ser poupada. Ela acredita em mim. Não o diz, mas eu sei.
Tento que me dê descanso, uma folga, a possibilidade de viver a minha vida. Digo, “estou muito constipada. Mal consigo abrir os olhos hoje, mãe, dói-me a cabeça e o corpo…”. Logo me responde, “ora, deixa-me cá. Estive para nem me levantar. É que nem me conseguia vestir. Se tivesses as dores que tenho nos braços e na coluna, até chegar à cabeça… parecem facas a espetar-se. Já tomei dois Voltaren, mas faz-me um mal ao estômago! Tens de me trazer mais Omeprazol. O fígado também não anda grande coisa; sinto umas picadas. Depois é os intestinos, tu já sabes, sempre o mesmo problema. Tens que ir à farmácia que me indicou a dona Luciana e perguntar se tem um medicamento novo cujo nome me há de mandar. É que não há nada, nada que me esvazie os intestinos, até tenho a barriga dura, carrega aqui! E com isto tudo não dormi nada”.
O mundo existe para a servir. Tão insuportável! Tem escaras no tornozelo e na anca, do lado direito do corpo, que ando a tratar com Betadine e pomadas. Gosto dela. Não a suporto. Quando morrer não me resta mais ninguém. Nunca mais morre. Não morras.
“Quando eu morrer não terás mais ninguém.” O papá não disse o mesmo ou estarei equivocada? “Quando eu morrer vais sentir a minha falta.”
Chego da escola. Tem fome. Cozinho à pressa. Dei-lhe a carne inteira e devia tê-la desfiado, por causa dos dentes. Por que fiz a canja de arroz e não de massa? Reclama que a sopa está espessa ou rala demais. A embalagem do Diltiazem não é igual às anteriores, portanto o medicamento é diferente e não faz o mesmo efeito. A tensão anda descontrolada por causa do aperto na aorta. Precisa do Cholagutt gotas. Urgente. Ainda tem um frasco, mas só dá para duas ou três semanas. Ralho, “tu não tens consciência do que é a minha vida nem respeito por mim nem pelo meu esforço. Mãe, tu não tens pena de mim, só dos outros”. Digo-o, arrependo-me e sento-me no sofá, respirando e pensando que eu e o papá não tivemos pena dela. Foi a nossa escrava incondicional, sem folga todos os dias que viveu. E apesar de tudo continuo a querer dar-lhe a ilusão de que sou uma filha como as outras, como penso que deseja. Perceberá que sou apenas eu? Que não sendo como as outras, sou outra. Tem calor. Tiro-lhe a manta. Tem frio. Atiro-lhe com ela. Peço-lhe desculpa. Penso, “vai-te embora, se o teu corpo acabou. Deixa-me agora viver. Espera, não vás. Espera um pouco mais. Aguenta-te. Aguentas-te? Quanto tempo me vais sacrificar ainda? Não sei viver sem ti. Vai Sobrevivemos todos uns aos outros”.
E a mamã morreu mesmo, sem conseguir o feito de entrar docilmente na noite serena e odiando a luz que começava a morrer. Como a entendo! Que difícil será desistir, deixar para trás, libertar o peso que queremos manter porque esteve connosco e nos matou e amparou no mesmo minuto, porque tudo é o que é e o seu contrário. Como é que se abdica da vida?!
Era para lhe ter pedido uns conselhos na véspera à noite, mas já era tarde. A conversa fica adiada para um sonho futuro. Não lhe dei o beijo de boas noites. Há um dia em que todas as noites acabam.