[N.152 | 2025]

Cara paz [fragmento]

Lisa Ginzburg

Na parede ao lado da minha cama, eu tinha uma foto de Gloria com nós duas. Era uma fotografia tirada por Seba, num domingo longínquo em que havíamos ido ao lago Nemi todos juntos. Ventava naquele dia, brincamos de correr uma atrás da outra perto da margem: no retrato, nós três, mãe e filhas, aparecemos despenteadas, esbaforidas, alegres. Mamãe no meio, nós duas abraçadas a ela. Eu olhava e olhava de novo aquela foto. De noite, quando ninguém me via, virada para a parede eu a encarava travando conversas comigo mesma – diálogos mudos que eram meu grande segredo.

Já acontecera de eu falar com outra fotografia; essa lembrança, agora, agitava meus pensamentos, exatamente como ocorreu naquela época. Um retrato de Gloria sozinha que – xerocado em 50 cópias – havia ficado por muitos dias pendurado nos muros de Genzano num fevereiro distante. Ela, Gloria, tinha uma aparência radiante, vestia um impermeável vermelho bem cintado, a fivela brilhante e preta como os botões. Mamãe tinha comprado aquele impermeável na via Appia Nuova, durante um passeio conosco num sábado, poucas semanas antes de ir embora para sempre. O vermelho se perdia na foto em preto e branco, fiéis à realidade só restavam o jogo de luz e o contraste e a elegância da roupa. No xerox, como uma legenda em letras maiúsculas lia-se a palavra “DESAPARECIDA”, e mais embaixo, num corpo tipográfico menor, um número de telefone.

Nina e eu falamos sobre isso em diversas ocasiões, a última recentemente. A lembrança mais difícil, para ambas, seguia sendo aquela fotografia xerocada e pendurada por aí. A vergonha de pensar que muita gente iria vê-la, grudada no vidro da parada do ônibus que ia para Roma, no saguão da nossa escola, na entrada dos correios e da prefeitura, nos três cafés que davam para a praça central, na porta do centro recreativo da via delle Rose, onde jovens e velhos passavam o final de semana – até mesmo lá. O mal-estar diante do espetáculo da compaixão por parte de conhecidos, colegas, professores. De mãos dadas com a vovó Imma, na rua, mantínhamos os olhos baixos, o coração apertado pela angústia, emudecidas.

Só falávamos à noite, pouco antes de dormir.

“Onde você acha que ela está, Maddi?”

“Bem longe, acho. Mas você vai ver, a mamãe vai voltar, eu acredito.”

“Como você pode ter certeza?”

“Se ela estivesse morta, nós sentiríamos. Haveria algum sinal.”

“Que sinal?”

“Um sinal, tipo uma percepção mágica. Agora durma, Nina, não pense nisso…”

“Não consigo.”

“Tente. Conte as pérolas do colar.”

“Que colar?”

“Um que você possa imaginar: tipo aquele vermelho-coral da mamãe…”

“Mas se penso no colar, volto a pensar nela.”

“É. Você tem razão.”

Eu prestava atenção nas palavras, nas minhas e nas de Nina, cada palavra. Sentia intensamente a responsabilidade de protegê-la diante de qualquer coisa; ela era a minha irmã mais nova, em alguma parte na minha cabeça pulsava a obrigação imperativa de lhe garantir alguma explicação sobre a vida absurda que levávamos havia dias. Eu era o seu trâmite no mundo, era o que eu achava. Sua fortaleza. Se a mamãe não voltasse, eu dizia a mim mesma, se tivesse acontecido algo ruim e ela tivesse desaparecido para sempre, ou se não nos amasse mais e já não precisasse de nós, então eu deveria ser a mãe. Mãe de Nina e mãe de mim mesma. Fantasias aterrorizantes, audaciosas, daquele tipo de audácia que ocorre quando nos sentimos desesperados.

Gloria ligou na quinta-feira seguinte após seu desaparecimento na sexta-feira. Ligou de noite, enquanto estávamos à mesa. Um pouco antes, senti falta de ar, lutava com uma crise de asma que se aproximava – uma crise que, depois da ligação, milagrosamente, decidiu me poupar. “Mamãe lhes manda muitos beijos”, Seba nos disse afobado, sentando-se de novo à mesa. “Tudo bem, agora ela não podia se demorar na ligação, ligará outra noite.”

“Outra noite… Qual?” – perguntou Nina, que era boa em dissimular a raiva e a irritação polêmica por trás do sarcasmo e da meiguice desde então.

“Onde você está, mamãe? E que razão a impede de falar conosco pelo telefone?”, era o que eu pensava, entretanto. A crise de asma recém-contida deixava espaço para a ansiedade. Estômago fechado, o frango alla diavola esfriando no prato. Nina começou a chorar e em seguida eu também; tentando nos consolar, Imma, a avó, mostrou-se inoportuna. Seba levantou-se novamente e, agora, próximo à janela piso-teto semiaberta, fumava sem se preocupar com o frio da noite invernal. As tragadas intensas, enquanto aspirava o cigarro, iam escavando pequenas fossas em suas bochechas como um sumidouro. Eu, da mesa, onde permaneci sentada, o espiava seguir o voo lento dos anéis de fumaça que do lado de fora subiam no escuro pelo ar gélido. Um homem aniquilado.

O nó de apreensão que ele tinha nos impedido de viver na última semana se desfez, sumiu, como um lastro de areia que desmoronou numa queda surda e definitiva. Gloria estava viva, sã e salva. Nossa mãe adorada. Nada de tão terrível, só havia ido embora, só isso: fugiu de casa, da sua casa, da sua família. E Seba, incrédulo, surdo àquela nossa dor que marcava o fim, uma estação final. Mamãe estava bem, a veríamos novamente. Não havia desaparecidos, nem feridos, nem perdas insuportáveis a serem aceitas. Concluía-se um pesadelo, contudo, continuava a insolvência, crescia; aquela partida de Gloria, sem aviso prévio, era apenas o primeiro sinal. Um muro começara a se desfazer e não iria parar. Nossa confiança nos adultos, era isso o que estava para acabar.

No caminho para a escola na manhã seguinte, o alívio de não ver mais as fotos penduradas nos muros. Deve ter sido Seba, ao amanhecer, quem arrancou as fotocópias afixadas nos arredores, sabe-se lá com que amargo consolo no coração.

“Você viu a foto, Maddi?”

“Não, não tem mais fotos, Nina, fique tranquila.”

Tudo será de novo verdadeiro, gostaria de ter lhe dito: instável, contudo viva, conosco, de carne e osso. De carne e osso: era isso o que buscávamos Presença, constância, a realidade do que existe, do que é. Eu queria ter tranquilizado a minha irmã com certezas desse tipo, no entanto, eu não podia. porque o amor onipresente de Gloria seria diferente de agora em diante, um amor mais distante, menos encarnado, e era como se eu já soubesse.

“Minha querida e pequena Maddalena, você vai ver como agora tudo voltará ao normal”, ouvi em voz baixa dito pela minha professora enquanto me apressava para deixar a sala de aula e me juntar aos outros colegas no pátio do recreio. Dei de ombros. fiquei quieta; sabia que nada daquilo era verdade, que nenhuma melhora se perfilava para nós. A fuga de Gloria era apenas o primeiro passo, as coisas iriam se complicar novamente. Fosse como fosse, nossa mãe não morrera, não tinha sido sequestrada, nenhuma tragédia tinha ocorrido: sentia-me poupada disso, da mesma forma quando a asma me roçava de perto, se preparava para me fechar os pulmões, sacudi-los deixá-los estremecidos, mas no fim me poupava do suplício de outra crise.

“Minha mamãezinha, nada de ruim lhe aconteceu. Obrigada, céu, que você entende e sabe.” Na cama, antes de dormir, num sussurro para que Nina não ouvisse, eu dizia minhas preces secretas para Gloria. Em mim, alívio e gratidão; em Nina, raiva, pedaços de uma dor rancorosa. “Nenhuma mãe deixaria suas filhas assim, Maddi. A nossa mãe se comportou pior que a mãe de João e Maria”, sentenciou com um fio de voz. E depois de uma pausa: “Acho que nunca vou perdoá-la, quero que você saiba disso, Maddalena”. Nina e suas condenações inapeláveis. Palavras como socos desferidos na altura do coração, explosões que escorregavam no espaço entre a parede e as nossas camas sobrepostas.

Na casa de Monteverde, eu tinha à disposição um quarto todo para mim, e com Gloria, com aquela foto dela junto a nós duas à beira do lago, eu podia falar sempre que tivesse vontade. A imagem de mamãe, enfim, não correspondia mais a nenhuma preocupação, pensar nela já não apertava a boca do meu estômago nem oprimia de forma alguma meus pulmões frágeis. Agora era só vazio e ausência. Agora víamos Gloria, era possível vê-la dois domingos por mês, como estabelecido pelo juiz de família. De forma intermitente e anômala, nossa mãe estava de novo conosco: ausente e sempre presente. Um meteoro, uma aparição; e, mais tarde, quando ia embora novamente, virava a rainha incontestável dos nossos pensamentos.

“Boa noite, mamãezinha.” “Tchau, Gloria, mamãe beleza; tenha orgulho de mim, sou forte, se você visse como consigo nunca chorar.” As conversas com as fotografias desenhavam meu mundo. Aqueles diálogos noturnos eram âncoras: ganchos contra a correnteza do destino para que não se rompesse o fio que ligava os nossos encontros, enlaçando cada um ao seu seguinte. Conversar com a foto da mamãe queria dizer esticar aquele fio, manter unidas as nossas felicidades rasgadas, e raras.

Com uma paciência ardente, eu esperava o próximo encontro. Solícita, disciplinada, ótima aluna na escola – aos domingos, nos encontros com Gloria, eu levava comigo os cadernos, orgulhosa, mostrava-lhe a ordem perfeita, comprazida com seus elogios. Ela aprovava tudo com amplos sorrisos apressados: temos que ser rápidas, parecia dizer, corridas, a respiração é curta para as nossas trocas, cada instante deve ser aproveitado, vivido, valorizado, pois é a recuperação do tempo que nos foi arrancado.