[N.227 | 2025]

Cartas travessias

Flávia Carvalhaes

Passagem de Mariana, 28 de janeiro de 2025

Mãe,

Desde que Miguel chegou, estou tomada pelas lembranças de nós duas. Vou revisitando detalhes, lacunas, silêncios. Outro dia me lembrei de quando meu irmão partiu e senti medo de que meu filho pudesse em algum momento também decidir que já não valia a pena ficar. Me acalmei ao lembrar que hoje você lê livros por prazer e por escolha e não mais para encontrar a exatidão das palavras.
Me lembrei de uma cena.

O relógio cuco avisava que já eram quinze horas e você continuava ali, sentada, lendo mais um livro. Já não sei quantos livros tinha lido desde que Gustavo decidiu que era hora de ir.

Fazia dezessete anos que via esse cuco anunciar as horas. Primeiro na casa da vó Regina, mais especificamente na parede do escritório do vô Murilo, onde também ficava uma enorme caixa de lápis de cor que os netos só podiam ver, jamais tocar. Um dia meu avô escondeu a caixa para que os netos não pudessem nem mesmo vê-la. Minha vó a encontrou no alto da estante e em um ato de fúria jogou-a com força lá de cima para o chão. Eu me encantei com as cores dos lápis esparramadas e com o susto do meu avô.

Eu e meus primos ficávamos esperando a cantoria do cuco, e, vez ou outra, eu me perguntava o que fazia o pequeno pássaro quando retornava para dentro do relógio.

Aos dezessete anos, o cuco ainda me parecia um membro da família, principalmente quando ele passou a morar na sala de nossa casa. Eu ainda o esperava cantar o tempo, embora já não me perguntasse o que ele fazia nas horas vagas. Mas, naquele dia, o anúncio do cuco das quinze horas não roubou minha atenção, porque eu te olhava naquele canto da sala, naquele sofá, ainda sem banho, ainda sem trocar a roupa do dia anterior, ainda sem comer, lendo mais um livro depois que meu irmão decidiu que era hora de partir.

Você emagreceu rápido naqueles meses, tão rápido que nem consegui acompanhar a mãe que partia com cada quilo. Contraditório como te achava mais bonita e tentava fazer com que você também me considerasse interessante de algum modo, mas você tinha decidido não prestar atenção e morar no sofá, decidido viver com os livros, decidido que já não podia ser mãe de alguém.

Eu reparava no seu cabelo negro e desgrenhado e torcia para que você também quisesse ouvir o cuco. Queria que seus cabelos habitassem a minha cabeça e pensava na possibilidade da rouquidão da sua voz ser também a minha. Mas logo me lembrava que você quase já não falava, só balbuciava uma palavra ou outra desde que ele partiu, uma palavra ou outra entre os livros que você insistia em ler na tentativa de encontrar algo que já não sabia dizer.
Quando criança, eu te esperava entrar no meu quarto às quinze horas com o prato branco de plástico, com duas divisórias, uma para o suco de laranja sem gelo e sem açúcar e a outra para o queijo quente cortado na diagonal. Eu não gostava muito de queijo, porém nunca contei nem para você nem para cuco. Esperava os dois sistematicamente às quinze horas.

O meu gato Polônio me acaricia as pernas e me lembra do horário de dormir, hoje meu cuco tem quatro patas e geralmente às quinze horas está dormindo em seu esconderijo. Tomo o último gole de vinho enquanto a chuva embala o sono de meu filho e de meu companheiro. Agradeço pela lembrança e pela escrita que anuncia que não há o que temer, pois hoje você lê livros por prazer e por escolha e não mais para encontrar a exatidão das palavras.

Com amor,
Flávia


Londrina, 22 de novembro de 2020

Bisa Guilhermina,

Estava lendo uma mulher chicana contar sobre sua língua selvagem, de como ela fez sua língua dançar, aliás, de como sua língua a fez dançar para que não fosse domada.

Essa mulher das fronteiras me fez pensar em você.

Te imagino no vilarejo de sete ruas, na encruzilhada entre três histórias, brava consigo mesma por ter se deixado engravidar por ele, brava por ter que caminhar com Iolanda na barriga e nenhum anel no dedo. Ele te deixou.

Sei que por isso você seguiu como mulher agulha, a furar os olhos dos outros para que não te enxergassem. Por isso o tecido de sua pele enrugou tão cedo.

Soube há pouco tempo que somos mulheres costureiras, mas eu ainda não consigo respirar entre as linhas do meu tecido português. Ainda tenho pressa. A agulha e a linha não são minhas aliadas. Por ora, te conto que tenho me deixado desenhar entre as cores de alguns lápis que, pacientes, vêm me dizendo que sou uma mulher que sabe bordar.

Soube também que sua filha Iolanda dançava com a agulha e a linha, e que em sua irmandade elas três conversavam na língua dos mudos. Contaram-me também que Iolanda ficou novamente em silêncio quando se viu na mesma encruzilhada. Caminhar com Fernanda na barriga e nenhum anel no dedo. Ele a deixou.

Mais, as irmãs exigiram que Iolanda não se curvasse às vozes estreitas das setes ruas estreitas, exigiram que ela reconhecesse a importância da mulher costureira. Ouvi dizer que ela se tornou a melhor bordadeira da região. Ouvi dizer também que, de tanto silenciar, ela só pôde respirar até os 44 anos. Ela teria me ensinado a bordar mais cedo.

Bisa, faz um ano que minha mãe me observa de modo curioso. Ela sente que tenho o mesmo olhar silencioso de minha avó Iolanda e fica feliz, embora saiba que eu ainda preciso explicar para os lápis de cor que tenho medo de bordar.

Te conto que a minha mãe, sua neta Fernanda, seguiu com Gustavo e Flávia na barriga e um anel no dedo. Por um tempo, ela respirou aliviada acreditando que havia desviado da encruzilhada, porém mal sabia ela que também seria abandonada. Eles a deixaram.

Mas fica tranquila, bisa, hoje é aniversário da sua neta, 74 anos. Faz tempo que Fernanda vem sorrindo com facilidade. Te conto que nas terças-feiras de manhã ela costura com outras mulheres, em roda. Ela segue, finalmente, bordando a sua vida.

Quanto a mim, já consigo desenhar.

Com amor,
Flávia