Você arranca uma pequena flor
presente súbito que traz todos os dias
para nós
flor-quase-mato, flor-quase-esquecimento
viveria talvez algumas semanas
pendendo sobre a calçada
flor que não sabe os pormenores de que resulta
florir, como você não sabe os detalhes
de que resulta este dia, você
entrega a flor arrancada, você corre
para o quarto
e me deixa a enorme responsabilidade
cultivar a planta morta
Você atravessa, distraída
Você arranca uma pequena flor
presente súbito que traz todos os dias
para nós
flor-quase-mato, flor-quase-esquecimento
viveria talvez algumas semanas
pendendo sobre a calçada
flor que não sabe os pormenores de que resulta
florir, como você não sabe os detalhes
de que resulta este dia, você
entrega a flor arrancada, você corre
para o quarto
e me deixa a enorme responsabilidade
cultivar a planta morta
nossa existência
e me transforma, de novo, em útero.
dias de espiga vermelha e pólen
dias de cálice roxo e estio
dias amarelo-em-casulo
dias rosa-nascimento
dias brancos sombra
dias sépala
Coloco-as para secar, protejo da gata
e das formigas,
das intempéries da casa
desenho um jardim seco
e portátil
Preciso começar um herbário,
prensá-las nas páginas
úmidas
nesta página úmida
escrever com folhas e pétalas
entre raízes de palavras
que você atravessa
interrompe
outro dia que abre a corola
*
Exercício de arqueologia:
os brinquedos escondidos são fósseis
e cada gesto lembra outro,
instintivo
volto,
cada som guarda outro, ecoa
a humanidade inteira concentrada em você
pesquiso cada mínimo artifício
o que já sabe distinguir no quarto
e entender
é nossa caverna, o exterior aguarda
ainda para ser conquistado.
Como eram os primeiros bebês?
Também fantasiavam, como você faz agora
um osso, uma folha, um pequeno cadáver
de animal – brinquedos dispersos
a caverna era um útero seco, largo
perigoso
menos que a luz, menos que a rua
que leva ao passado
atravessa os milênios até aqui
nós duas nesta postura primitiva
corpo
corpo
corpo
todos os sentidos
aguçados
para te proteger.
*
255 batimentos por minuto
seu coração move o meu,
multiplicado.
Como houvesse dentro um gato
à espera,
sobreposto.
Como houvesse dentro um lobo
que transmuta o corpo
em noite e faro.
Como houvesse um pássaro
que inventa um ninho
sobre o voo.
170 vezes bate o seu coração-asa.
A ele minha pulsação se dobra,
somada mais uma vez a frequência.
Como houvesse um coração
em cada palavra.
Pulsa a placenta sob a máquina,
outro coração que te abriga.
Enquanto você guarda pai e mãe
nas batidas, duas vezes mais rápida
calcula:
o tempo do que renasce.
Somamos os três o coração
de uma ave.
Como um cão que a perseguisse
– e que a ela se soma –
enfrento todos os nomes
o ritmo inventa este jogo de encaixe
do som vem o rosto, a carne, os gestos.
Tão rápido o fluxo
preciso fazer-me pequena
para acompanhá-la
filha de novo, aguardo
Você tão frágil, peixe doméstico
dentro das margens-correntezas
da mãe-aquário-mar-aberto.
A vida se espalha no que é violência
e canto
sinto o coração oceânico do mundo
-baleia, lento, movendo as águas
o amor, as escolhas
tudo é espera
e só o seu coração acelera
o silêncio
O movimento é estreito
oposto:
enquanto você se acostuma
com o espaço
esqueço o contorno
um pulmão se alarga
falha o outro
tudo é exterior e íntimo
como você
que ainda não sabe o corpo
o nascimento, leio:
ainda é extensão
do que fui
e o que sou além
do parto
continuar grávida, terceiro trimestre
depois o segundo, o primeiro,
a concepção
De novo estar só.
O ventre se expande volta
até que outra memória nasça
vivê-la simultânea
a tudo o que perece:
cresce contra o tempo
até a raiz
onde salta, bruta, a flor
sem caule
ou promessa
talvez no mesmo momento
em que você começa
a se reconhecer.