[N.224 | 2025]

Falta hereditária

Giovanna Genghini

Há um mal que assola a minha família, entre mães, filhas e hospitais psiquiátricos.

Minha avó se internou num hospício nos anos 1980. Até hoje não se fala disso, não sabemos por quê. Ela não foi boa mãe: uma vez arremessou um sapato de salto na testa da filha. Levaram minha mãe criança para um hospital. Na época, não havia ECA. Inventaram uma desculpa e passou batido. Minha mãe sempre chora e diz que não teve amor de mãe. Acho que minha avó não aprendeu a amar os filhos, só os teve.

Hoje meio que deixamos para trás (talvez só um pouco?) essa coisa de que toda mulher tem que ter filho. A mãe da minha avó, por exemplo, teve mais de dez. Ela me contava que uma das filhas morreu numa viagem – colocaram a menina morta numa mala, puseram a mala no ônibus e voltaram para casa. Eu ouvia essa história com curiosidade: minha bisavó não chorava, contava como mais um outro caso, como quando Getúlio Vargas frequentava a roça em que ela trabalhava e a chamava de Inezinha. Nunca perguntei a ninguém se a história da filha na mala era verdade; eu sentia medo e deslumbre pela história. Essa bisavó amava muito a minha mãe, a tratava como filha. Eu observava aquilo pensando se eu ou minha irmã continuaríamos ou romperíamos o ciclo familiar. Minha bisavó não gostava da filha, mas gostava da neta. Minha avó não gosta da minha mãe, mas gosta da gente.

Minha avó não foi uma boa mãe para a minha mãe, mas foi uma boa avó, por um tempo. Quando a gente era criança ela cuidava muito bem. Comprava roupas, presentes e comida. Parece normal, né? Mas não tínhamos muito. Nenhum de nós foi planejado, mas minha mãe queria filhos. Teve minha irmã primeiro, um ano e três meses depois eu nasci, e então veio meu irmão. Meu pai queria um filho homem. Ia fazer minha mãe colocar criança no mundo até vir um machinho, e graças a Deus veio no terceiro. Penso sempre que meu irmão poderia ter sido o segundo, assim eu não teria nascido. Quando meu irmão nasceu, minha avó decidiu que estava bom de filhos e pagou uma laqueadura após o parto. Minha mãe soube depois. Naquela época não se falava em violência obstétrica. Acho que minha mãe nem sabe o que é isso. Também acho que minha mãe achava que estava bom de filhos.

Tinha sim a questão da pobreza e o fato da minha mãe ser viciada em drogas, meu pai também. Dois viciados tentando criar três crianças. Eu nem consigo imaginar, mas aconteceu comigo. Minha mãe parou de usar drogas de um dia para o outro. Ela colocou minha irmã para fora de casa, colocou meu irmão no colo da minha irmã e eu segurava com minha mãozinha a mãozinha dela. Ela disse vão para a casa da sua avó, mãe do meu pai. A casa era no mesmo quintal, minha mãe não era tão irresponsável. Quando penso nessa imagem, me vem à cabeça a obra de Portinari, Retirantes, distorcida. Depois minha mãe foi usar crack, mas naquele momento ela tinha decidido sair daquela vida. Ela percebeu que tinha filhos. Só no terceiro. Depois ela parou, parou de vez. Com o crack. Mas existem outras drogas. Ela diz que a gente a salvou, mas eu não acho que filho serve para salvar alguém. Serve para quê?

Minha mãe me deixou como herança o fardo da bipolaridade. Eu quero ter filhos. Não da minha barriga. Um negócio crescendo dentro de mim? Mas quero adotar. Adotar dois irmãozinhos. Está bom de botar criança no mundo. Adotando, as crianças não devem pensar que a gente é ruim, né? Mas talvez pensem. Imagino eles me vendo na pior fase, puxando cabelos, com pensamentos de morte, falando com demônios. Eu queria mesmo ter filhos. Não sei se eles vão querer me ter como mãe.