[N. 234]

Garotas em tempos suspensos [fragmentos]

Tamara Kamenszain

14.
Na idade na qual ser moça
coincidia com a minha idade
o aborto era sussurrado entre amigas
e a pergunta milenar era
qual caminho devo tomar para evitar o medo.
Entre nossa geração e a de nossas mães
um abismo de mútuos preconceitos
bastou para que o único diálogo impossível,
a afásica cumplicidade que nos unia,
fosse não dizer nunca
as palavras que não deviam ser ditas.
E hoje? Será que não se diz demais?
Porque cuidado que o que começa como poesia
pode terminar como um romance ruim.
(Me assusta um pouco o estereótipo
que algumas séries de TV constroem
obstinadas em fabricar para o mercado
histórias de supostas transgressoras.)
Estou velha? E nesse indubitável caso
posso pretender ser moça mesmo assim?
Quando estava na ridícula idade
que chamavam “de casar”
nunca falei com minha mãe sobre sexo
nunca falei com minha mãe sobre quase nada
e no entanto e no entanto
invoco minha mãe agora porque ela
pode me proteger dos contágios.
Embora fosse química e respeitasse
o cientificismo dos vates
durante a pandemia de pólio fabricou para mim
um colar do qual pendia
uma pedrinha de cânfora.
A pedrinha que ela não me deixava tirar nem para dormir
foi o amuleto mulheril que da mãe para a filha
afastava o ancestral medroso, esse fantasma que
como o lobo de Amelia ou o “real” de minha analista
espera uma oportunidade para me acossar.

15.
Minha mãe também preferia
ser chamada pelo sobrenome
dizia que no seu trabalho tinha que se mostrar dura
para poder lidar com os homens.
Por isso ela com sua dureza performática
– tailleur, cigarro, uísque ao voltar do trabalho –
me lembra um pouco Juana Bignozzi.
Especialista em lidar com os vates
a poetisa boa de briga
os enfrentava quando ainda ninguém
tivera coragem fazer isso.
Jogava neles versos de comadre como estes:
“Não estou falando da solidão da alma
essas são coisas de poeta
solidão para mim é jantar sozinha na minha cidade”.
Ou estes outros em que a rima é uma brincadeira:
“enquanto meus colegas escrevem os grandes versos da poesia argentina
eu fervo a vagem na cozinha”.
Juana de fato teria gostado
de ser confundida com mais uma
das garotas de lenço verde
nessa Praça de avós militantes
pela qual ela teria avançado
exibindo um cartaz que dissesse
“ninguém sabe que uma mulher que entrou na velhice
volta a sentir”.