[N.239]

Leve como ar [fragmento]

Ada d’Adamo


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Prezado Augias, 1

um “excelente” médico não foi capaz de ler num ultrassom que minha filha iria nascer com uma malformação cerebral grave. Hoje, minha menina, com pouco mais de dois anos, é uma pessoa com várias deficiências, e cem por cento de invalidez. Frequentando serviços de neuropsiquiatria infantil e centros de reabilitação, encontro todo dia dezenas de crianças nascidas prematuramente. São em grande parte cegas ou têm deficiência visual, como a maioria dos bebês prematuros. Porém, o déficit visual é quase sempre acompanhado de outros danos irreversíveis, cerebrais ou de motricidade. Nestes anos, conheci famílias desintegradas, uniões destruídas, mulheres mergulhadas na depressão. Nem todos têm a força física, os instrumentos psíquicos, os meios econômicos e a cultura necessários para combater a burocracia implacável, a crueldade de certos médicos e a incivilidade que impera, a solidão e o cansaço e, enfim, a própria inadequação de si mesmo. É especialmente em nome dessas pessoas que lhe escrevo. A igreja, a política e a medicina precisam parar de olhar para as mulheres como putas que não veem a hora de matar os próprios filhos. O aborto é uma escolha dolorida para quem a faz, mas é uma escolha e precisa ser garantida. Apesar de ela ter virado minha vida de cabeça para baixo, adoro minha filha maravilhosa e imperfeita. Porém, se pudesse ter escolhido naquele dia, teria optado pelo aborto terapêutico. Aos médicos que querem ressuscitar fetos mesmo sem o consentimento das mães, eu digo: saiam das UTIs, vão ver com seus próprios olhos o que essas crianças se tornaram, a que presente eterno condenaram essas mães.

Essa carta, publicada no jornal La Repubblica em fevereiro de 2008, saiu do meu peito como um grito. Há algum tempo, se reacendera a controvérsia em torno da Lei nº 194, que regulamenta o aborto, e os antiabortistas haviam voltado à briga com suas batalhas em defesa da vida. Debates, declarações e proclamações estavam aparecendo na televisão. 

Naqueles mesmos dias, li — de uma sentada — o belo livro de Valeria Parrella, Lo spazio bianco. O tema — o nascimento de uma criança com problemas — me tocava de perto, e eu ficara impressionada com a capacidade da autora de transformar em matéria literária uma vivência que eu sabia estar relacionada à sua experiência pessoal. Sua escrita devolvia o sentido de impotência, o estado de suspensão e de incerteza, o vácuo da palavra “futuro”: sentimentos que, todos eles, me pertenciam profundamente. A consciência e o comedimento das suas palavras, tão distantes das vozes fora dos limites e agressivas que ecoavam nos meios de comunicação, haviam me provocado um curto-circuito. Lembro-me que, ao terminar o livro, me sentei diante do computador, escrevi livremente algumas linhas e mandei-as por e-mail a ela. Não se tratava de um ato de coragem, eu não queria demonstrar nada a ninguém. Simplesmente a palavra “vida” havia se tornado insustentável para mim quando dita de qualquer jeito por qualquer um: estandarte, bandeira a ser agitada, na verdade, mortalha que envolvia o corpo das mulheres como uma condenação. Os movimentos “pela vida”, a “proteção da vida”. “Será que sou a favor da morte, eu?”, perguntei-me. E em especial, de qual vida estamos falando? Da minha? Da sua? E como é minha vida? E que vida você leva? Quantos sofrimentos ainda a aguardam? Quem pode decidir se uma vida vale a pena ser vivida? Interrogações, dúvidas. Nenhuma certeza. Só a necessidade — ainda que na minha condição, aliás, levando bastante em consideração minha condição de mãe de uma filha que veio ao mundo — de reivindicar para todas o direito de escolha, até para as que tinham escolhido outra coisa.

Eu desejava romper a divisão entre mães boas e más. Não queria me dobrar à hipocrisia, incluir-me, sem merecimento algum, na lista das mulheres que tinham abraçado a cruz e eram citadas como exemplo de virtude. Não me sentia, e jamais vou me sentir, uma “mãe-coragem”, e sabia que apenas a falta de um diagnóstico pré-natal me separava do bando daquelas que eram consideradas egoístas, infames, homicidas. Por bem ou por mal, minha vida sem você teria sido diferente. Escrevi que gostaria de ter podido escolher. E uma afirmação como a minha, não teórica, mas dita na presença de uma criatura viva e de boa saúde, soou intolerável para os ouvidos de alguns. 

Naquela noite, Emma Bonino leu meu testemunho durante um programa de televisão, alguns apresentadores de rádio e de televisão me pediram para participar de seus programas, enquanto minha caixa-postal ficava cheia de cartas de apoio, enviadas muitas vezes por parte de mães e pais de crianças com deficiência que haviam reconhecido nas minhas palavras aqueles emaranhado de amor e desespero que era também o deles. Mas na internet, onde “a carta de Ada” foi lançada outra vez, surgiram também alguns ataques. Lembro-me de alguns deles. O primeiro era o de um homem que tinha certeza de que minha carta era falsa, uma invenção feminista para difundir o aborto a todo custo. O segundo era por parte de uma mulher: era difícil para ela entender que uma mãe pudesse escrever algo assim para sua filha. Se o fiz — ela concluiu —, eu devia ter o coração de pedra. Aqueles comentários me feriram, me induziram a me retirar do debate político e midiático mesmo antes de entrar nele. 

Porém, nas mudanças de um computador para outro, perdi todas as mensagens daqueles pais e mães que eram como eu, e isso foi um grande pesar. Sinto que poderia ter me agarrado àquelas palavras em momentos muito difíceis que vivi com você nesses anos. Pergunto-me como é que eles viveram, como se tornaram. Desejo que tenham resistido, que tenham conseguido sobreviver, de um jeito ou de outro. 

  1. S Corrado Augias (1935) tornou-se popular na Itália como apresentador de vários programas sobre mistérios e casos do passado, como Telefono giallo e Enigma. Foi também eleito para o Parlamento Europeu entre 1994 e 1999 pelo Partido Democrático (PD). [N.T.] ↩︎