Na composição de minhas memórias familiares, percebo como o Tempo costura respostas para perguntas que ainda nem sequer foram feitas. Acordei com uma vontade absurda de escrever, pois há dias ensaio palavras que dão voltas aqui dentro. De algum modo, por sincronia ou necessidade, parei justo hoje, que é aniversário de sessenta anos de minha mãe. Mulher negra, proativa e determinada, minha mãe carrega uma coletânea de provações em sua trajetória. A última, e talvez mais impactante, foi um acidente que quase tirou sua vida. Ela sobreviveu, mas adicionou ao seu arsenal de memórias uma fratura exposta na perna. Depois de meses, a recuperação segue lenta, e até hoje não a vimos caminhando sem ajuda. Ela segue firme. Afinal, tal como árvores amazônicas, as mulheres de minha família carregam grande resistência.
Na gestação do meu primeiro filho, eu estava certa de que não gostaria da presença de minha mãe no parto. Eu nasci de cesárea e ela sempre teve medo do parto natural. Eu acreditava que a sua energia aflita poderia interferir em meu processo. Quatro anos depois, planejei outra gestação e estava decidida a parir em casa. Nossa relação já estava muito harmoniosa e sua presença no parto agora trazia um outro tempero. Na cultura tradicional de quase todo o território africano, a presença da mãe da parturiente tem um imenso valor. Existe uma relação espiritual muito forte entre avó-mãe-filha, e parir na presença da mãe é algo muito auspicioso. Por isso, empenhada em retomar hábitos e princípios do meu povo, já estava disposta a viver uma experiência diferente no nascimento de meu segundo filho. Curiosamente, a vida me pregou uma lição quando recebi a notícia do acidente de minha mãe poucos dias antes de parir. Não bastasse a sua ausência, eu precisei lidar com a delicadeza de sua internação e três cirurgias.
A verdade é que em todos esses anos eu muito escrevo sobre ser mãe e quase nada sobre ser filha. Talvez porque ainda não tenha encontrado caminhos confortáveis para remexer no meu próprio líquido amniótico. Talvez porque na maternidade eu encontre um poderoso caminho de autoconhecimento que no lugar de filha ainda não encontrei. É que ser filha me coloca diante de infinitas angústias e perguntas, enquanto ser mãe me traz esperança e me faz adentrar uma correnteza de respostas. Ser mãe é muito prazeroso para mim. Para algumas mulheres, deve ser estranho ver a maternidade sendo colocada neste lugar, já que, apesar de todo o afeto, ser mãe é extremamente desconfortável e desafiador. Acontece que, quando falo sobre maternidade, falo de uma maternidade negra e indígena. Para nós, maternar é uma conquista. Não podemos esquecer que passamos por 400 anos de escravidão neste território. QUATROCENTOS! Durante todo esse tempo, nós mulheres negras e indígenas fomos impedidas de amamentar e cuidar de nossos próprios filhos. Ama de leite no passado… e hoje? Babá. O cenário não mudou tanto quanto parece.
A não permissão de maternar ficou registrada em nossa memória celular, e essa lembrança ancestral nos coloca diante de um abismo imenso. Foram 400 anos vivendo uma realidade na contramão do que nosso povo comunga – a noção de que a maternidade é uma dádiva. Nas tradições originárias isso pode ser notado em cada escultura e em cada cântico sagrado: ser mãe é um ofício digno de uma iniciação espiritual.
Como mãe afro-indígena, eu tenho muito para dizer. Também há muito o que agradecer, porque escolhi ser mãe e tenho a oportunidade de maternar meus filhos. Isso não significa que não haja dor. Das mais subjetivas às concretas e palpáveis. É preciso lidar diariamente com todo o abuso ao qual somos submetidas. Insalubridade hospitalar, retorno ao trabalho sem rede de apoio, educação pública precária, nutricídio e diversas outras coisas que dizem respeito a ter filhos pretos neste país. Não é só isso. É também a labuta de cuidar de uma criança enquanto o sistema espreme por todos os lados, esperando uma produtividade incompatível com nossos seios que jorram leite. É tudo isso e muito mais.
Porém, apesar de tudo, aqui estão eles em meus braços.
Começo, no lugar de filha, dando vazão a uma narrativa e me pego finalizando com um grito silencioso que não cabe em um único documento. Confiando no giro espiralar do tempo, permito que os ares me toquem o rosto para que suavizem as memórias marcadas a ferro e fogo. Percebo que ser mãe preta é ter a poética constantemente atravessada pela militância. Há muita beleza e magia para compartilhar por meio das palavras. Mas, de algum modo, uma rachadura profunda sempre nos coloca diante de um megafone gritando para que as balas parem de encontrar os nossos filhos. Eu seguirei sendo grata, mas também seguirei sendo luta.