Faz pouco, fui a uma cachoeira depois de muito tempo – nadei, tomei sol, escutei o barulho da água e senti o calor das pedras ao redor de mim. Alguns metros acima, as formações de rocha se organizavam de maneira que criavam uma ponta proeminente, mas segura, de onde as pessoas pulavam na água. Subi até lá e, em um rompante de coragem, decidi que tinha de pular – não havia outro jeito. Eu precisava fazer aquilo e não haveria medo que me parasse.
Quando criança, eu tinha muita coragem: subia em árvores, nadava onde quer que fosse, vivia me machucando em quedas de bicicleta que deixaram minhas pernas cheias de cicatrizes. O tempo passou e eu não percebi que ia ficando cada vez mais medrosa, vivendo no terror generalizado de um mundo em que tudo de ruim pode acontecer a qualquer momento. Agora, até andar em passarelas na cidade me causava um certo pânico.
Não se brinca com medo, ou medo é de se brincar? Quando pequena, eu sentia o frio na barriga ao pular de um lugar alto, subir na torre onde ficava a caixa d’água no terreno do meu avô. Era divertido explorar o mundo olhando de cima, com aquela sensação agitada de saber que bastava segurar firme e tudo ficaria bem.
Ali, na cachoeira, olhando para aquele corpo d’água escuro e frio que corria sete metros abaixo de mim, parecia que era preciso responder ao que meu corpo me dizia por meio das pernas trêmulas e do coração que ardia no peito com ansiedade. Viver com medo ou conviver com ele?
Um pouco mais embaixo, havia um lugar que parecia mais seguro para pular. Então, desci por entre as pedras e, quando cheguei, tomei mais alguns minutos para respirar. Finalmente, com um grito talvez um pouco exagerado, pulei. Apesar do medo, tomei a decisão insensata de não perder a conexão com a ingenuidade lúdica de acreditar que, segurando firme, não teria como dar tão errado.
Na volta, fiquei pensando sobre a minha relação com o medo. De onde vinha aquele ímpeto de desafiá-lo? E de onde será que os medos vêm?
Para além dos instintos primitivos que nos permitem a sobrevivência no mundo, o medo se dá na construção do sujeito por meio das experiências, da observação, da interpretação de nossos corpos e das histórias de corpos semelhantes aos nossos. Na adolescência, eu tinha urgência em ter uma determinada aparência, amansar qualquer sinal da negritude do meu corpo, como tantas outras meninas que cresceram nos anos 2000. Mais que isso, eu sentia que meu corpo não tinha direito a nenhuma dissonância, porque eu já não era branca. Era preciso gabaritar as dinâmicas opressivas de padrão estético branco e conservador. Eu não podia pintar uma mecha rosa nos cabelos, vestir roupas diferentes, experimentar cortes mais ousados e, sobretudo, definitivamente tinha de ser magra.
Os meus medos eram uma cartografia triste de inseguranças cruéis que o mundo me fazia tomar como cerne de tudo.
Na universidade, ao me aprofundar no trabalho de intelectuais negras e me empenhar em entender melhor dinâmicas étnico-raciais tão particulares ao nosso país, passei a me posicionar melhor nos contextos em que vivia, mas continuei me deparando com o medo. Medo de não ser escolhida, de não ser desejada, de não ser boa o suficiente para ocupar os espaços que eu queria ocupar – intelectual e profissionalmente. Isso não quer dizer que deixei de fazer o que eu queria. Eu tive a rede e a estrutura necessárias para, mesmo com medo, seguir em frente. Apesar das incertezas, decidi fazer um mestrado, morar em lugares diferentes, mergulhar em experiências de amor.
No texto “Intelectuais negras”, bell hooks conta: “Às vezes, perseguida e vítima de abusos, na vida intelectual encontrei um refúgio, um abrigo onde podia experimentar uma sensação de atuar sobre as coisas e, com isso, construir minha identidade subjetiva.”
Refletindo sobre minhas experiências na última década, sobre tudo que decidi viver apesar do medo, percebi que eu ainda era aquela menina corajosa – muito corajosa –, só que de outro jeito. Dar a mim mesma a permissão de romper com os entendimentos que o mundo me impõe e fazer um esforço, nadando contra a maré, para propor minha própria identidade, é coragem. Ainda que do lado de fora nada mude, sigo fazendo meus movimentos, esquivando meu corpo nos caminhos sinuosos da vida — mesmo que o medo me acompanhe.
No fim das contas, estamos o tempo todo saltando do topo de pedras e gritando bem alto, tentando segurar firme, tentando ficar bem.