[N.205 | 2025]

Notas sobre a fome [fragmento]

Helena Silvestre

Eu sei sobre a fome, porque já a senti me atravessar as veias – isso que as pessoas daqui aprenderam que tinha o nome de fome. Conheci o buraco vazio que avança, engolindo todas as beiradas de um desejo que não nasce na cabeça e que precisa de comida, tão forte é esse desejo.

Saber sobre a fome é saber também sobre aquilo que as pessoas daqui aprenderam a chamar de desejo.

Todo animal possui instintos de sobrevivência, tão intensa é a ligação da vida com a vida.

Todas as plantas crescem na direção do sol, esticando-se ao longo da vida, em busca de comida, escalando montanhas e paredes de apartamentos ou descansando, freneticamente no fundo dos oceanos escuros, tentando sintetizar alguma luz, tão intensas são a química, a física e a matemática que se desembrulham nas células do nosso desejo de viver.

Quanto mais a fome grita, com sua boca enorme arreganhada em nossas barrigas, mais o desejo se escancara, buscando alguma claridade luminosa onde possa agarrar suas unhas vermelhas.

Muito difícil pensar com fome. Muito difícil desenvolver-se com fome, cantar com fome, amar com fome, desapegar-se estando com fome. Tudo aquilo que mora na mais rica experiência da vida vai sendo arrancado de nós e nossos corpos se atrofiam, como radares embaçados que não captam bem a luz.

Imagine que não sei nadar.

Não faz nenhum sentido que uma pessoa de 34 anos, nascida onde reside a maior reserva de água doce do mundo, avizinhada de uma das maiores costas ladeando um país, não saiba nadar.

Há coisas informadas à minha inteligência pelo meu território em contato com meu corpo, e eu fui desfigurada por possuir dispositivos de conhecimento que a fome atrofiou, porque conheci o mar já com alta idade. Mas o desejo – que se esticava, buscando fotossintetizar-se dentro de mim – foi tão enorme que achou ondas de luz opaca no fundo de uma densa lama e respirou, junto dos caranguejos no mangue. Tornei-me caranguejo antes de conhecer o mar.