Entender é sempre um movimento ascendente; é por isso que a compreensão deve sempre ser concreta. (Ninguém jamais sai da caverna, é removido de lá.) Simone Weil, Cadernos
Anotação no meu diário, novembro de 1960
Meus filhos me causam o sofrimento mais delicado que já experimentei. É o sofrimento da ambivalência: a alternância fatal entre o ressentimento amargo e os nervos à flor da pele, a gratidão jubilosa e a ternura. Às vezes, diante dos meus sentimentos por esses pequenos seres inocentes, pareço, até para mim, um monstro de egoísmo e intolerância. Suas vozes desgastam meus nervos, suas necessidades constantes, acima de tudo a necessidade de simplicidade e paciência, me enchem de desespero por minhas falhas e também por meu destino, que é servir em uma função para a qual não sou adequada. E às vezes fico fraca de tanto conter a raiva. Às vezes sinto que só a morte vai nos libertar uns dos outros, e nessas horas invejo a mulher infértil11 que pode se dar ao luxo de ter seus arrependimentos, mas leva uma vida de privacidade e liberdade.
E, no entanto, em outros momentos eu me derreto diante da sua beleza vulnerável, encantadora e quase irresistível – a capacidade que eles têm de continuar amando e confiando –, sua lealdade e decência e espontaneidade. Eu os amo. Mas é na imensidão e na inevitabilidade desse amor que reside o sofrimento.
Abril 1961
Um amor exultante pelos meus filhos me envolve de tempos em tempos e parece ser quase suficiente – o prazer estético que tenho com essas pequenas criaturas mutantes, a sensação de ser amada, apesar da dependência, também a sensação de não ser uma mãe completamente desnaturada e rabugenta – embora eu seja!
Maio 1965
Sofrer com e por e contra um filho – maternalmente, egoisticamente, neuroticamente, às vezes com uma sensação de desamparo, às vezes com a ilusão de se tornar mais sábia –, mas sempre, em todo lugar, de corpo e alma, com aquela criança – porque aquela criança é um pedaço de você.
Debater-se em ondas de amor e de ódio, de inveja até mesmo da infância dos filhos; de esperança e medo pelo amadurecimento deles; de desejo de ser libertada da responsabilidade, atada a cada fibra do ser.
Aquela curiosa reação primitiva de proteção, a fera defendendo seu filhote, quando alguém o ataca ou o critica – e, no entanto, ninguém é mais dura com ele do que eu!
Setembro 1965
Degradação da raiva. Raiva de uma criança. Como posso aprender a absorver a violência
e expressar apenas o carinho? A exaustão pela raiva. Vitória da vontade, duramente conquistada – a muito custo!Março 1966
Talvez eu seja um monstro – uma antimulher –, uma coisa motivada e sem recurso aos confortos normais e atraentes do amor, da maternidade, da alegria com os outros…
Suposições não analisadas: primeiro, uma mãe “natural” é uma pessoa sem outra identidade anterior, alguém cuja maior satisfação é passar o dia inteiro com crianças pequenas, vivendo em um ritmo ajustado ao delas; o isolamento de mãe e crianças juntas em casa deve ser considerado normal; o amor materno é, e deveria ser, quase literalmente abnegado; crianças e mães “causam” sofrimento umas às outras. Eu era assombrada pelo estereótipo da mãe cujo amor é “incondicional” e pelas imagens visuais e literárias da maternidade com uma identidade com propósito único. Se eu soubesse que existiam partes de mim que nunca seriam coerentes com essas imagens, não seriam essas partes então anormais, monstruosas? E como meu filho, agora com 21 anos, observou ao ler as passagens anteriores: “Você parecia sentir que tinha que nos amar o tempo todo. Mas não existe um relacionamento humano em que você ame a outra pessoa em todos os momentos.” Sim, tentei explicar a ele, mas espera-se que as mulheres – especialmente as mães – amem desse modo.
Dos anos 1950 e início dos anos 1960, eu me lembro de um ciclo. Começava quando eu pegava um livro ou tentava escrever uma carta ou até mesmo quando estava ao telefone com alguém e minha voz revelava uma avidez, um impulso enérgico de solidariedade. O filho (ou os filhos) podia estar absorto em suas preocupações, em seu mundo de sonhos; mas assim que ele notava que eu estava escapando furtivamente para um mundo que não o incluía, vinha puxar minha mão, pedir ajuda, bater nas teclas da máquina de escrever. E naquele momento eu sentia que o desejo dele era fingimento, uma tentativa de me privar de viver até mesmo por quinze minutos como eu mesma. Minha raiva aumentava; eu sentia a futilidade de qualquer tentativa de me preservar, e também a desigualdade entre nós: minhas necessidades eram sempre medidas em relação às de uma criança, e sempre perdiam. Seria capaz de amar muito melhor, eu dizia a mim mesma, depois de uns quinze minutos de egoísmo, de paz, de distância dos meus filhos. Alguns minutos! Mas era como se um fio invisível entre nós pudesse esticar e se romper, provocando uma sensação de abandono inconsolável na criança, se eu me movesse – não apenas fisicamente, mas em espírito – para um território além de nossa restrita vida juntos. Era como se minha placenta se recusasse a dar oxigênio a ele. Como tantas outras mulheres, eu esperava com impaciência pelo momento em que o pai deles voltaria do trabalho, quando, por uma ou duas horas, o círculo desenhado ao redor da mãe e dos filhos se alargaria um pouco, e a intensidade entre nós se abrandaria, com a presença de outro adulto em casa.
Eu não entendia que esse círculo, esse campo magnético em que nós vivíamos, não era um fenômeno natural.
Intelectualmente, eu deveria saber disso. Mas, na época, quando me vi no papel de Mãe, de uma maneira carregada de emoção e intensamente tradicional, aquilo me parecia inevitável como as marés. E, por causa desse arranjo – o microcosmo em que eu e meus filhos formávamos um núcleo emocional particular, e no qual (quando o tempo estava ruim ou alguém ficava doente) às vezes passávamos dias sem ver outro adulto exceto o pai deles –, havia uma necessidade autêntica nas demandas inventadas do meu filho quando eu parecia me afastar dele. Ele estava se assegurando de que a afeição, a ternura, a estabilidade e a solidez ainda estariam disponíveis para ele, na minha pessoa. Minha singularidade, o que me tornava única no mundo como mãe dele – talvez de modo mais tênue também como Mulher –, evocava uma necessidade mais vasta do que qualquer ser humano seria capaz de satisfazer, a não ser dando amor de modo contínuo e incondicional, do nascer ao pôr do sol, e com frequência no meio da noite.
2
Em 1975, passei uma tarde na sala com um grupo de mulheres poetas, algumas das quais tinham filhos. Uma delas tinha levado os seus, e eles dormiam ou brincavam nos quartos ao lado. Nós falamos de poesia, e também de infanticídio, sobre o caso de uma mulher da cidade, mãe de oito crianças, que estava em depressão profunda desde o nascimento do terceiro filho, e que recentemente havia assassinado e decapitado os seus dois mais novos no jardim de casa. Várias mulheres do grupo, sentindo uma conexão direta com o desespero dela, assinaram uma carta ao jornal local protestando pela forma com que o ato foi noticiado pela imprensa e tratado pelo sistema público de saúde mental. Cada uma das mulheres naquela sala que tinha filhos, cada uma das poetas, podia se identificar com ela. Nós falamos da raiva profunda que a história dela fez brotar em nós. Falamos dos momentos em que sentimos uma raiva assassina de nossos filhos, porque não havia mais em quem ou em que descontar aquela raiva. Falamos de modo às vezes hesitante, às vezes exaltado, às vezes amargamente espirituoso, sem floreios – a linguagem de mulheres que se reuniram para falar de seu próprio trabalho, a poesia, e acabaram descobrindo outra coisa em comum: uma raiva inaceitável, mas inegável. Na medida em que falávamos e escrevíamos, os tabus eram quebrados e as máscaras da maternidade começavam a cair.
Por séculos ninguém falou desses sentimentos. Eu me tornei mãe na América freudiana dos anos 1950, centrada na família e orientada para o consumo. Meu marido falava ansiosamente dos filhos que teríamos, meus sogros esperavam pelo nascimento do neto. Eu não tinha a melhor ideia do que eu queria, do que eu podia, ou não, escolher. Só sabia que ter um filho era assumir completamente a vida adulta de mulher, provar para mim mesma que eu era “como as outras”.
Ser “como as outras” tem sido um problema para mim. Desde os treze ou quatorze anos, sentia que apenas interpretava o papel de uma criatura feminina. Aos dezesseis, meus dedos estavam quase o tempo todo manchados de tinta. O batom e os saltos altos eram disfarces difíceis de manejar. Em 1945, eu escrevia poesia a sério e sonhava ir para a Europa do pós-guerra como jornalista, dormir entre as ruínas das cidades bombardeadas, registrando o nascimento da civilização depois da derrota dos nazistas. Mas, como todas as outras garotas que conhecia, também passava horas tentando me maquiar com mais habilidade, ajeitando as costuras soltas das meias, falando de “garotos”. Minha vida já tinha dois compartimentos diferentes. No entanto, a poesia e meus sonhos de viagens e autossuficiência pareciam mais reais para mim; como uma iniciante em ser “mulher de verdade”, eu me sentia uma farsa. Ficava especialmente paralisada quando encontrava crianças pequenas. Acho que sentia que os homens podiam – e queriam – ser levados a pensar que eu era realmente “feminina”; mas suspeitava que o olhar de uma criança seria capaz de me atravessar como um tiro. Essa sensação de interpretar um papel despertava uma curiosa culpa, ainda que isso fosse necessário para minha sobrevivência.
Tenho uma memória muito nítida e marcante do dia seguinte ao meu casamento: eu estava varrendo o chão. Provavelmente o chão não precisava ser varrido; provavelmente eu apenas não tinha a menor ideia do que mais poderia fazer comigo. Mas, enquanto varria o chão, pensava: “Agora eu sou uma mulher. Isso é coisa de adulta, é o que as mulheres sempre fizeram.” Sentia que estava me curvando a uma forma antiga, ancestral demais para ser questionada. É o que as mulheres sempre fizeram.
Assim que minha gravidez se tornou clara e visível, eu me senti, pela primeira vez desde a adolescência e o início da vida adulta, livre de qualquer culpa. A atmosfera de aprovação em que me via envolvida – até mesmo por estranhos, me parecia – era como uma aura que me acompanhava, na qual as dúvidas, os medos e as preocupações eram recebidos com negação absoluta. Isto é o que as mulheres sempre fizeram.
Dois dias antes de meu filho mais velho nascer, tive urticária que foi diagnosticada equivocadamente como sarampo, e fui internada em um hospital para doenças contagiosas para aguardar o trabalho de parto. Pela primeira vez, tive consciência de sentir medo e culpa em relação a meu filho ainda não ter nascido, por meu corpo “falhar” com ele dessa maneira. Nos quartos próximos ao meu havia pacientes com pólio; ninguém podia entrar no meu quarto a menos que usasse traje hospitalar e máscara. Se durante a gravidez eu me sentia vagamente no controle da minha situação, agora eu me sentia totalmente dependente do meu obstetra, um homem enorme, vigoroso, paternal, transbordando otimismo e segurança, e dado a beliscar minhas bochechas. Minha gravidez havia sido saudável, mas era como se eu a tivesse vivido sedada ou sonâmbula. Tive aulas de costura nas quais fiz uma roupa feia e mal cortada para usar na maternidade (mas nunca a usei), fiz cortinas para o quarto do bebê, colecionei roupinhas, me esqueci o quanto pude da mulher que havia sido até uns meses antes. Meu segundo livro de poemas estava na gráfica, mas eu tinha parado de escrever poesia, e lia pouco, a não ser revistas para donas de casa e livros sobre cuidados com o bebê. Era como se o mundo me visse simplesmente como uma mulher grávida, e parecia mais fácil, menos perturbador, me ver assim. Depois do nascimento do meu filho, o “sarampo” foi diagnosticado com uma reação alérgica à gravidez.
Em apenas dois anos, eu estava grávida de novo, e escrevi num caderno:
Novembro 1956
Se é a lassidão extrema do início da gravidez ou algo mais fundamental, eu não sei: mas ultimamente, em relação à poesia – seja lendo ou escrevendo –, não sinto nada além de tédio e indiferença. Especialmente a respeito da minha poesia e da dos meus contemporâneos imediatos. Quando recebo cartas pedindo manuscritos, ou quando alguém alude à minha “carreira”, sinto um desejo intenso de rejeitar toda responsabilidade e interesse por aquela pessoa que escreve – ou que escrevia.
Se vai acontecer uma verdadeira ruptura na minha vida de escritora, este é um momento tão bom quanto qualquer outro. Ando insatisfeita comigo, com o meu trabalho, há muito tempo.
Meu marido era um homem sensível, afetuoso, que queria ter filhos e que – o que era incomum no mundo profissional acadêmico dos anos 1950 – estava disposto a “ajudar”. Mas entendíamos claramente que essa “ajuda” era um ato de generosidade; que sua obra, sua vida profissional eram o verdadeiro trabalho dele na família; de fato, durante anos isso nem sequer foi uma questão entre nós. Eu entendia que minhas lutas como escritora eram um tipo de luxo, uma peculiaridade minha; meu trabalho quase não rendia dinheiro: ou ainda, ele me custava dinheiro quando eu contratava uma diarista para poder escrever por algumas horas durante a semana. “Tudo que peço ele tenta me dar”, escrevi em março de 1958, “mas sempre preciso tomar a iniciativa.” Eu sentia que minhas depressões, as explosões de raiva e a sensação de aprisionamento eram como fardos que meu marido se sentia obrigado a carregar porque me amava; eu me sentia agradecida por ser amada, apesar de lhe trazer esses fardos.
No entanto, estava lutando para colocar minha vida em foco. Nunca desisti realmente da poesia, nem de ter algum controle sobre minha existência. A vida no quintal de um prédio de Cambridge fervilhando de crianças alvoroçadas, os ciclos repetitivos de lavagem de roupas, a necessidade de acordar no meio da noite, as interrupções de meus momentos de paz ou de envolvimento com ideias, os ridículos jantares festivos nos quais as jovens esposas, algumas com pós-graduação, todas dedicadas de modo sério e inteligente ao bem-estar de seus filhos e às carreiras de seus maridos, tentando reproduzir as amenidades da elite de Boston em meio a receitas francesas e falsa espontaneidade – sobretudo a falta de seriedade com que as mulheres eram vistas naquele mundo –, tudo isso desafiava a compreensão naquela época, mas eu sabia que precisava refazer minha própria vida. Eu não entendia que nós – as mulheres da comunidade acadêmica – assim como em várias comunidades de classe média naquele período – encarávamos a expectativa de desempenhar tanto o papel da Mulher de Vida Fácil, de Anjo da Casa, quanto a combinação vitoriana de cozinheira, copeira, lavadeira, governanta e babá. Eu só sentia que falsas distrações me drenavam, e queria desesperadamente libertar minha vida do que não era essencial.
Junho 1958
Nestes meses me vi num emaranhado de irritações que se enroscaram até virar raiva: amargura, desilusão com a sociedade e comigo mesma; brigando com o mundo, rejeitando tudo completamente. Qual é o saldo positivo, se é que houve? Talvez a tentativa de refazer minha vida, de salvá-la da mera deriva e da passagem do tempo…
O trabalho que tenho pela frente é sério e difícil, e nem sequer tenho certeza de como devo planejá-lo. Disciplina da mente e do espírito, originalidade, uma existência diária organizada, o funcionamento mais eficaz do ser humano – essas são minhas principais metas. Até agora só consegui começar a perder menos tempo. O que tem um pouco a ver com rejeitar tudo.
Por volta de julho de 1958, eu estava grávida mais uma vez. A vida do meu terceiro – e, como determinei, o último – filho foi uma espécie de virada para mim. Eu tinha aprendido que meu corpo não estava sob meu controle; gerar um terceiro filho não tinha sido minha intenção. Sabia agora, muito mais do que antes, o que outra gravidez, outra criança, significava para o corpo e para o espírito. Contudo, não pensei em fazer um aborto. De certa forma, meu terceiro filho foi uma escolha mais ativa do que os seus irmãos; no momento que soube que estava grávida dele, eu não estava mais em estado de sonambulismo.
Agosto 1958 (Vermont)
Escrevo isso enquanto os primeiros raios do sol iluminam as colinas e as nossas janelas. Levantei-me [com o bebê] às 5h30 e o amamentei e tomei café da manhã. Esta é uma das raras manhãs em que não sinto uma depressão mental e uma exaustão física terríveis.
[…] Preciso admitir para mim mesma que não teria escolhido ter mais filhos, que estava começando a contemplar um momento, não muito distante, em que poderia ser livre novamente, sem todo esse cansaço físico, buscando uma vida mais ou menos intelectual e criativa. […] O único jeito como posso me desenvolver agora é com um trabalho ainda mais duro, contínuo e conectado do que minha vida atual permite. Outro filho significa adiar isso por mais alguns anos – e, na minha idade, alguns anos são significativos, não devem ser descartados levianamente.
Mesmo assim, de alguma forma, alguma coisa, a Natureza ou aquele fatalismo afirmativo da criatura humana, me torna consciente de que o inevitável já faz parte de mim, algo que não deve ser combatido e sim usado como mais uma arma contra a deriva, a estagnação e a morte espiritual. (Pois é realmente a morte que eu temo – o esfacelamento até a morte desta fisionomia mal nascida que tenho lutado a vida inteira para dar à luz – um indivíduo autônomo irreconhecível, uma criação na poesia e na vida.)
Se for necessário, farei mais esforço. Se tiver que enfrentar mais desespero, acho que posso antevê-lo e sobreviver a ele.
Enquanto isso, para nossa surpresa e curiosidade, recebemos com alegria o nascimento de nosso terceiro filho.
Eu tinha, é claro, reservas econômicas e espirituais que me permitiam pensar no nascimento de um terceiro filho não como minha sentença de morte, mas como “mais uma arma contra a morte”. Meu corpo, apesar dos atuais sinais de artrite, estava saudável, tive um bom atendimento pré-natal; nós não estamos à beira da desnutrição; sabia que todos os meus filhos teriam comida, roupas, respirariam ar fresco; na verdade, não me ocorreu que pudesse ser de outro jeito. Mas, noutro sentido, além daquela reserva física, eu sabia que estava lutando pela minha vida com a vida dos meus filhos, por meio delas e contra elas, apesar de pouco mais do que isso estar claro para mim. Eu vinha tentando dar à luz a mim mesma; de alguma forma penosa e obscura, estava determinada a usar até mesmo a gravidez e o trabalho de parto nesse processo.
Antes de meu terceiro filho nascer, decidi não ter mais filhos, ser esterilizada. (Nada é removido do corpo da mulher durante a operação; a ovulação e a menstruação continuam, embora a linguagem sugira que sua feminilidade essencial é cortada, ou queimada, assim como a palavra “estéril” sugere uma mulher eternamente vazia a quem falta algo.) Meu marido, embora apoiasse minha decisão, perguntou se isso não faria com que me sentisse “menos feminina”. Para fazer a cirurgia, eu tinha que apresentar uma carta ao comitê de médicos que aprovavam o procedimento, assinada também pelo meu marido, garantindo que já tinha concebido três filhos e declarando minhas razões para não ter mais nenhum. Como sofria de artrite e reumatoide havia alguns anos, pude dar um motivo aceitável para o júri masculino que analisava meu caso; minha vontade, por si só, não seria aceitável. Quando acordei da operação, 24 horas depois do nascimento do meu filho, uma jovem enfermeira olhou o meu prontuário e comentou friamente: “Ligou as trompas, é?”
A primeira grande defensora do controle da natalidade, Margaret Sanger, destacava que, das centenas de mulheres que escreviam para ela pedindo informações sobre contracepção no início do século 20, todas diziam querer ter força e saúde para serem mães melhores para os filhos que já tinham, ou trocar carinhos com seus maridos sem o pavor de engravidar. Nenhuma estava recusando totalmente a maternidade, ou querendo uma vida fácil. Essas mulheres – a maioria pobre, muitas ainda com menos de vinte anos, todas com vários filhos – simplesmente não sentiam que conseguiam mais fazer o “certo” pelas suas famílias, a quem elas esperavam continuar educando e servindo. Contudo sempre existiu, e ainda existe, um medo intenso da possibilidade de as mulheres terem a palavra final sobre como seus corpos serão usados. É como se o sofrimento da mãe e a identificação primordial da mulher como mãe fossem tão necessários para os fundamentos emocionais da sociedade humana a ponto de um alívio ou a eliminação desse sofrimento e dessa identificação tivessem que ser combatidos em todos os níveis de todas as formas, inclusive por meio da recusa total a questionar isso.
3
“Vous travaillez pour l’armée, madame?” [Você está trabalhando para o exército, senhora?], me perguntou uma moça francesa no início da Guerra do Vietnã, ao saber que eu tinha três filhos.
Abril 1965
Raiva, exaustão, desmoralização. Crises de choro repentinas. Uma sensação de ser insuficiente para este momento e pela eternidade…
Paralisada pela sensação de que existe uma teia de relações, por exemplo, entre minha rejeição e a raiva [de meu filho mais velho], minha vida sensual, o pacifismo, o sexo (no sentido mais amplo, não apenas o desejo físico), – uma interconexão que, se eu pudesse vê-la e torná-la válida, me devolveria a mim mesma e me permitiria funcionar com lucidez e paixão –, mas eu me debato tentando me desvencilhar dessas teias sombrias.
Eu choro, e choro, e a sensação de impotência se espalha pelo meu ser feito um câncer.
Agosto 1965, 3h30 da manhã
Necessidade de uma disciplina mais firme em minha vida.
Reconhecer que a raiva cega é inútil.
Limitar a sociedade.
Usar melhor o horário em que as crianças estão na escola para o trabalho e a solidão.
Recusar-me a ser distraída pelo meu próprio estilo de vida.
Menos desperdício.
Ser mais dura, muito mais, com os poemas.
De vez em quando alguém me perguntava: “Você nunca escreve poemas sobre seus filhos?” Os poetas homens da minha geração escrevem poemas sobre os filhos – especialmente sobre as filhas. Para mim, a poesia era onde eu vivia sem ser a mãe de alguém, onde existia como eu mesma.
Para mim, os bons e os maus momentos são inseparáveis. Lembro das vezes em que, amamentando cada um dos meus filhos, seus olhos se abriam totalmente e buscavam os meus, e eu sentia que estávamos ligados um ao outro, não apenas pela boca e o seio, mas pelo olhar mútuo: a profundidade, a calma, a paixão daquele olhar azul-escuro, maduro, focado. Lembro do prazer de ter meus seios cheios de leite sugados, num período em que eu não tinha outro prazer físico na vida a não ser o prazer culpado de comer compulsivamente. Lembro desde o começo da sensação de um conflito, de uma batalha que nenhum de nós tinha escolhido, de ser uma observadora que, querendo ou não, também era parte dessa competição infinita de vontades. Para mim, era isso o que significava ter três filhos com menos de sete anos. Mas também lembro do corpo de cada filho, de como eram macios, graciosos, flexíveis, esbeltos, a beleza dos meninos pequenos a quem ainda não ensinaram que o corpo masculino deve ser rígido. Lembro dos momentos de paz, quando por alguma razão era possível ir ao banheiro sozinha. Lembro de ser arrancada de um sono já escasso para cuidar de um pesadelo infantil, ajeitar um cobertor, esquentar uma mamadeira, levar uma criança meio adormecida ao banheiro. Lembro de voltar para a cama totalmente desperta, fragilizada, com raiva, sabendo que o sono interrompido faria do meu dia seguinte um inferno, que haveria mais pesadelos, mais necessidade de consolo, porque, exausta, eu me enfureceria com as crianças por razões que elas não entenderiam. Lembro de pensar que jamais sonharia outra vez (o inconsciente de uma jovem mãe – como ele envia suas mensagens, se o sono profundo o bastante para sonhar é negado a ela por tantos anos?).
Por muitos anos, eu me encolhia só de pensar na primeira década de vida dos meus filhos. Nas fotografias da época, vejo uma jovem sorridente, usando roupas de maternidade ou curvada sobre um bebê meio nu; aos poucos ela para de sorrir, apresenta um olhar distante, meio melancólico, como se estivesse escutando alguma coisa. Com o tempo meus filhos cresceram, comecei a mudar minha vida, passamos a conversar como iguais. Vivemos juntos o fim do meu casamento, o suicídio do pai deles2. Viramos sobreviventes, quatro pessoas diferentes conectadas por laços fortes. Porque sempre tentei dizer a verdade a eles, porque cada vez que um deles ficava independente significava uma nova liberdade para mim, porque confiávamos uns nos outros mesmo quando queríamos coisas diferentes, eles se tornaram, ainda muito jovens, autoconfiantes e abertos à diferença. Algo me dizia que, se eles tinham sobrevivido à minha raiva, à minha autocrítica, e ainda confiavam no meu amor e no amor que tinham uns pelos outros, então eles eram fortes. A vida deles nunca foi nem será fácil; mas a própria existência deles me parece uma dádiva, sua vitalidade, humor, inteligência, gentileza, amor pela vida, o curso da vida de cada um deles que, aqui e ali, deságua na minha. Não sei como atravessamos a infância conflituosa deles e a minha maternidade conflituosa para chegar a um ponto em que reconhecemos a nós mesmos e uns aos outros. Provavelmente o reconhecimento mútuo, encoberto pelas circunstâncias da sociedade e da inflação, sempre esteve lá, desde o primeiro olhar entre a mãe e o filho no peito. Mas sei que, durante anos, acreditei que não deveria jamais ter sido a mãe de alguém e que, só por sentir intensamente minhas próprias necessidades e expressá-las com frequência de forma violenta, eu era Kali, Medeia, a porca que devora os próprios filhotes, uma mulher desnaturada fugindo da feminilidade, um monstro nietzschiano. Mesmo hoje, relendo diários antigos, recordando, sinto mágoa e raiva; mas não de mim ou de meus filhos. Mágoa por ter me desperdiçado naqueles anos, raiva pela mutilação e manipulação do relacionamento entre mãe e filho, que é a grande fonte e experiência do amor.
Em um dia de início de primavera nos anos 1970, encontrei uma jovem amiga na rua. Ela levava uma criança pequena junto ao peito, em um sling novo de algodão; o rostinho pressionado contra sua blusa, a mãozinha agarrada a um pedaço do tecido. “Quanto tempo ela tem?”, perguntei. “Só duas semanas”, a mãe me contou. Surpreendi em mim um desejo apaixonado de ter, mais uma vez, um novo ser agarrado ao meu corpo. O lugar do bebê é ali, aninhado, suspenso e adormecido entre os seios da mãe, assim como ficava aninhado no útero. A jovem mãe – que já tinha um filho de três anos – falou sobre como esquecemos rápido o prazer de ter essa criatura nova, imaculada, perfeita. Eu me despedi dela mergulhada em lembranças, com inveja. Contudo, sei de outras coisas: que a vida dela não é nem de longe fácil; ela é uma matemática que hoje tem dois filhos com menos de quatro anos; vive agora sob o ritmo de outras vidas – não apenas o choro regular do recém-nascido, mas as necessidades do de três anos, os problemas do marido. No prédio onde moro, mulheres ainda criam os filhos sozinhas, vivendo um dia depois do outro confinadas em seus núcleos familiares, lavando roupa, acompanhando os triciclos no parque, esperando os maridos voltarem para casa. Há uma piscina para bebês e uma sala de jogos para crianças, os jovens pais empurram os carrinhos de bebê nos finais de semana, mas a criação dos filhos ainda é responsabilidade exclusiva de cada mulher. Invejo a sensualidade de um bebê de duas semanas enrodilhado contra o peito; não invejo a confusão do elevador cheio de crianças pequenas, bebês berrando na lavanderia, o apartamento onde, durante o inverno, crianças de cinco, sete e oito anos ficam trancadas com apenas um adulto a quem recorrer para resolver frustrações e inseguranças e dar estabilidade a suas vidas.
4
No entanto, alguns dirão que essa é a condição humana, essa interseção de dor e prazer, frustração e realização. Posso ter dito a mesma coisa para mim mesma, há quinze ou dezoito anos. Mas a instituição patriarcal da maternidade não é a “condição humana”, assim como o estupro, a prostituição e a escravidão não o são. (Aqueles que falam muito da condição humana geralmente estão dispensados dessas opressões – sejam elas de gênero, raça ou servidão.)
A maternidade – não mencionada nas histórias de conquista e servidão, guerras e tratados, exploração e imperialismo – tem uma história, tem uma ideologia, é mais fundamental que o tribalismo ou o nacionalismo. Minhas dores como mãe, aparentemente particulares, as dores aparentemente particulares das mães ao meu redor e das que me antecederam, de qualquer classe ou cor, a regulação da capacidade reprodutiva da mulher pelos homens em todo o sistema totalitário e toda a revolução socialista, o controle legal e técnico dos homens sobre a contracepção, a fertilidade, o aborto, a obstetrícia, a ginecologia e os experimentos de reprodução extrauterina – tudo isso é essencial ao sistema patriarcal, assim como a visão negativa ou suspeita de mulheres que não são mães.
Na mitologia, no simbolismo dos sonhos, na teologia e na linguagem patriarcais, duas ideias andam lado a lado. Uma diz que o corpo da mulher é impuro, corrupto, lugar de secreções e sangramentos, perigoso para a masculinidade, fonte de contaminação moral e física, “o portão do diabo”. Por outro lado, a mãe é mulher benfazeja, sagrada, pura, assexuada, protetora; e o potencial físico para a maternidade – daquele mesmo corpo com seus sangramentos e mistérios – é seu único destino e justificativa da vida. Essas duas ideias foram profundamente internalizadas pelas mulheres, mesmo as mais independentes de nós, aquelas que parecem levar a vida mais livres.
Para sustentar duas ideias como essas, cada uma com sua pureza contraditória, a imaginação masculina teve que, para nos ver, dividir as mulheres e nos forçar a nos vermos, como polarizadas entre boas ou más, férteis ou estéreis, puras ou impuras. A esposa vitoriana, angelical e assexuada, e a prostituta vitoriana foram instituições criadas por esse pensamento duplo, que não tinha nada a ver com a verdadeira sensualidade das mulheres e tudo a ver com a experiência subjetiva dos homens com as mulheres. A conveniência política e econômica desse tipo de pensamento se mostra de forma mais desavergonhada e dramática, onde o racismo e o machismo se tornam uma coisa só. O historiador A. W. Calhoun descreve como os brancos donos de terra encorajavam os filhos a estuprar mulheres negras, num esforço deliberado de produzir mais escravos mestiços, pois a pele clara era considerada mais valiosa. Ele cita dois escritores de meados do século 19 sobre a questão das mulheres:
A parte mais pesada do fardo racial branco na escravidão era a mulher africana com fortes instintos sexuais, e sem escrúpulos sexuais, na porta do homem branco, na casa do homem branco. […] Sob a instituição da escravidão, o ataque contra a integridade da civilização branca acontecia por influência insidiosa da lasciva mulher mestiça no ponto de menor resistência. Na impureza inflexível da mãe e esposa branca de classe alta repousa a garantia da pureza futura da raça.
A maternidade criada pelo estupro não é apenas degradante; a mulher estuprada é retratada como criminosa, a agressora. Mas quem trouxe a mulher negra até a porta do homem branco, cuja falta de escrúpulos sexuais produziu crianças mestiças financeiramente lucrativas? Por acaso é questionado se a “pura” mãe e esposa branca também foi estuprada pelo dono de terras branco, uma vez que se pressupõe que ela não tem “forte instinto sexual”? No sul dos Estados Unidos, como em qualquer outro lugar, produzir crianças era uma necessidade econômica; as mães, negras e brancas, eram meios para esse fim.
Nem a mulher “pura” nem a “lasciva”, nem a conhecida como sinhá nem a mulher escravizada, nem a mulher louvada por se limitar a ser um animal reprodutor nem a mulher menosprezada e penalizada como “solteirona” ou “sapatão” tinham qualquer autonomia ou independência para vencer essa subversão do corpo da mulher (e portanto da mente da mulher). No entanto, como as vantagens a curto prazo são frequentemente as únicas visíveis para aqueles que não têm poder, nós também tivemos nossa participação na continuidade dessa subversão.
5
A maior parte da literatura sobre cuidados com bebês e psicologia infantil presume que o processo de formação do indivíduo é vivido essencialmente pela criança, com e contra um dos pais ou ambos, que para o bem ou para o mal estão envolvidos. Nada poderia ter me preparado para a percepção de que eu era uma mãe, uma daquelas envolvidas, quando sentia que eu mesma ainda não estava completamente criada. Aquela mulher calma, segura e coerente que virava as páginas dos manuais que eu lia parecia tão diferente de mim quanto uma astronauta. Sem dúvida, nada poderia me preparar para a intensidade do relacionamento que já existia com uma criatura que carreguei em meu corpo e agora segurava em meus braços e alimentava em meus seios. Ao longo da gravidez e nos primeiros dias cuidando do bebê, as mulheres me aconselhavam a relaxar, a imitar a serenidade das madonas. Ninguém mencionava a crise psicológica de dar à luz o primeiro filho, a agitação de sentimentos recalcados em relação à minha mãe, a sensação confusa de poder e de impotência, de, por um lado, ser dominada e, por outro, entrar em contato com novas possibilidades físicas e psicológicas no outro, uma sensibilidade acentuada que pode ser empolgante, desnorteante e exaustiva. Ninguém menciona a estranheza da atração – que pode ser tão obcecada e incontrolável quanto os primeiros dias de uma relação amorosa – por um ser tão pequeno, tão dependente, tão apegado – que é, mas não é, parte de você.
Desde o início, a mãe que cuida do bebê está envolvida em um diálogo que muda continuamente, cristalizado em momentos como quando, ao ouvir o filho chorar, ela sente o leite fluindo para os seios; quando, com o início da amamentação, o útero começa a se contrair e a voltar ao tamanho normal; e quando, mais tarde, o contato da boca do bebê com o mamilo cria ondas de sensualidade no ventre onde ele antes esteve; ou quando, sentindo o cheiro do peito, o bebê, mesmo adormecido, começa a tatear em busca do mamilo.
O bebê começa a ter noção da própria existência a partir dos gestos e expressões da mãe para ele. É como se, nos olhos da mãe, em seu sorriso, no carinho de seu toque, a criança recebesse pela primeira vez a mensagem: você está aqui! E a mãe também está, novamente, descobrindo sua própria existência. Ela está ligada a esse outro ser pelo mais mundano e invisível dos fios, de uma forma com que não pode se ligar a mais ninguém, exceto no passado profundo de sua conexão infantil com a própria mãe. E ela também precisa saber se desvencilhar dessa intensidade entre duas pessoas para chegar a uma nova percepção, ou a uma reafirmação, sobre o que significa ser ela mesma.
A amamentação, assim como o sexo, pode ser tensa, fisicamente dolorosa, carregada de sentimentos culturais de inadequação e culpa; ou, assim como o sexo, ela pode ser fisicamente deliciosa, cheia de uma sensualidade terna. Mas, assim como os amantes precisam se separar depois do sexo e voltar a ser indivíduos, a mãe precisa fazer o desmame para o filho e também para si mesma. A psicologia da educação infantil enfatiza a necessidade de “deixar a criança se desapegar”, pelo bem dela. Mas a mãe precisa se desapegar tanto quanto ou até mais do que a criança.
Nesse sentido de um relacionamento intenso e recíproco com uma ou mais crianças em particular, a maternidade é uma parte do processo de ser mulher; não é sua identidade o tempo inteiro. A dona de casa de quarenta e poucos anos pode brincar dizendo “sinto como se tivesse acabado de sair do trabalho”. Mas, aos olhos da sociedade, uma vez que nos tornamos mães, o que somos se não mães em tempo integral? O processo de “desapego” – ao longo do qual ficamos carregadas de culpa se não conseguimos realizá-lo – é um ato de revolta contra a corrente da cultura patriarcal. Mas não é o suficiente nos desapegarmos de nossos filhos; nós precisamos de identidades próprias para as quais voltar.
Dar à luz e criar uma criança é o que o patriarcado une com a fisiologia para formar a definição de feminilidade. Mas também pode significar experimentar o próprio corpo e as emoções de modo poderoso. Vivemos não apenas as mudanças físicas, carnais, mas o sentimento de mudança de caráter. Aprendemos, geralmente por meio de uma disciplina dolorosa, aquelas qualidades que supostamente deveriam ser “inatas” para nós: paciência, abnegação, disposição de repetir indefinidamente a rotina de tarefas para socializar um ser humano. Geralmente, para nossa surpresa, também somos inundadas por sentimentos de amor e violência mais intensos e selvagens do que conhecíamos. (Uma pacifista famosa, que também é mãe, disse recentemente num evento: “Se alguém encostasse a mão no meu filho, eu o mataria.”)
Essas experiências e outras similares não são facilmente postas de lado. Não surpreende que mulheres que enfrentaram as demandas incessantes da criação dos filhos tenham dificuldade de reconhecer a crescente independência deles; ainda sentem que são requisitadas, que precisam estar em casa, alertas, com os ouvidos sempre sintonizados para qualquer emergência. Filhos crescem, não numa curva ascendente suave, mas de modo irregular; suas necessidades são inconstantes como o clima. As “normas” culturais são maravilhosamente incapazes de definir, em uma criança de oito ou dez anos, qual gênero ele/ela irá assumir num determinado momento, ou como ele/ela vai lidar com uma emergência, com a solidão, a dor, a fome. Ficamos conscientes de que a existência humana é tudo, menos linear, muito antes do labirinto da puberdade; porque um ser humano de seis anos já é um ser humano.
Em uma cultura feudal ou tribal, uma criança de seis anos teria sérias obrigações; as nossas não têm nenhuma. Mas também não se acredita que a mulher que está em casa com os filhos tenha um trabalho sério; ela estaria apenas seguindo o instinto materno, fazendo as tarefas que os homens nunca assumem, totalmente alheia ao significado do que ela faz. Então a criança e a mãe são igualmente depreciadas, porque apenas homens adultos e mulheres com trabalho remunerado são considerados “produtivos”.
As relações de poder entre mãe e filho com frequência são um simples reflexo das relações de poder na sociedade patriarcal: é difícil distinguir “você vai fazer isso porque eu sei o que é bom para você” de “você vai fazer isso porque posso te obrigar”. Mulheres sem poder sempre usaram a maternidade como um canal – estreito, mas profundo – para seu desejo humano de poder, sua necessidade de devolver ao mundo o que foi imposto a elas. A criança arrastada pelo braço para tomar banho, a criança coagida, ridicularizada e subornada para aceitar “mais uma colherada” de uma comida que detesta é mais do que uma criança que deve ser criada de acordo com as tradições culturais da “boa maternidade”. Ele/ela é um pedaço da realidade, do mundo, que pode ser controlado, ou até modificado, por uma mulher restrita a decidir apenas sobre materiais inertes como poeira e comida3.
6
Quando tento retornar ao corpo de uma jovem de 26 anos, grávida pela primeira vez, que fugiu do conhecimento físico de sua gravidez e, ao mesmo tempo, de seu intelecto e sua vocação, percebo que fui de fato alienada de meu verdadeiro corpo e de meu verdadeiro espírito pela instituição – não pela realidade – da maternidade. Essa instituição – o fundamento da sociedade humana como a conhecemos – me permitiu apenas algumas opiniões, determinadas expectativas, desde que estivessem materializadas no livrinho na sala de espera do meu obstetra, nos romances que eu lia, na aprovação da minha sogra, nas lembranças da minha mãe, na Madonna da Capela Sistina ou na Pietá de Michelangelo, na noção flutuante de que uma mulher grávida é uma mulher calma e plena ou, simplesmente, uma mulher à espera. Mulheres sempre foram vistas como quem espera: esperando que lhe peçam algo, esperando nossas menstruações, com medo de que elas venham ou não, esperando homens voltarem para casa da guerra ou do trabalho, esperando as crianças crescerem ou o nascimento de um novo filho ou a menopausa.
Em minha gravidez, lidei com essa espera, essa sina feminina, negando toda característica ativa e poderosa de mim mesma. Eu me dissociei ao mesmo tempo da minha experiência corporal imediata e da minha vida de leituras, reflexão e escrita. Como uma viajante em um aeroporto com o voo atrasado há muitas horas, folheando uma revista que nunca leria numa situação normal, com anúncios baseados em pesquisas de mercado que não lhe interessam, eu assumia uma serenidade exterior e um profundo tédio interior. Se o tédio é apenas uma máscara para a ansiedade, aprendi, como mulher, que estar imensamente entediada era preferível a examinar a ansiedade subjacente à minha tranquilidade digna da Capela Sistina. No final, meu corpo, enfim sincero, mandou a conta: tive alergia à gravidez.
Passei a acreditar que a biologia das mulheres – a difusa e intensa sensualidade que irradia de nossos clitóris, seios, úteros, vaginas; o ciclo lunar da menstruação; a gestação e a fruição da vida que pode ser realizada pelo corpo da mulher – tem implicações bem mais radicais do que conseguimos apreciar até agora. O pensamento patriarcal confinou a biologia feminina aos limites estreitos de suas próprias especificações. Por essas razões, a visão feminista rejeita a biologia feminina; acredito que ela ainda vai reconhecer nossa fisicalidade como um recurso, em vez de um destino. Para termos uma vida humana completa, não precisamos de controle sobre nossos corpos (embora o controle seja um pré-requisito); temos que entrar em contato com a unidade e a ressonância de nossa fisicalidade, nossa ligação com a ordem natural, o fundamento corporal de nossa inteligência.
A inveja, o receio e o pavor que os homens, ontem e hoje, sentem da capacidade das mulheres de criar vida têm repetidamente assumido a forma de ódio por todos os aspectos da criatividade feminina. Não apenas disseram às mulheres que se restringissem à maternidade, mas nos disseram que nossas criações intelectuais e estéticas eram inapropriadas, inconsequentes ou escandalosas, uma tentativa de se tornar “como os homens” ou escapar das “verdadeiras” tarefas da vida adulta das mulheres: casar e ter filhos. “Pensar como um homem” tornou-se simultaneamente um elogio e uma prisão para a mulher que tenta escapar da armadilha do corpo. Não surpreende que tantas mulheres criativas e intelectuais insistem que são antes “seres humanos” e mulheres apenas por acaso, minimizando sua fisicalidade e seus laços com outras mulheres. O corpo tem sido tão problemático para as mulheres que, com frequência, parece mais fácil tratá-lo com indiferença e viajar para um espírito incorpóreo.
No entanto, essa reação contra o corpo agora chega a uma síntese com novos questionamentos quanto ao verdadeiro – em oposição ao culturalmente desvirtuado – poder inerente da biologia feminina, seja qual for o uso que façamos dele, de modo algum limitado pela função materna.
Minha história é só uma história. O que me levou até o fim foi a determinação de curar – até onde qualquer mulher consegue fazê-lo sozinha, e, na medida do possível, junto de outras mulheres – a separação entre o corpo e a mente; nunca mais me perder psíquica e fisicamente daquela forma. De maneira lenta, compreendi o paradoxo contido na “minha” experiência da maternidade; que, embora diferente das experiências de muitas outras mulheres, ela não era única; que apenas destruindo a ilusão da minha singularidade eu poderia ter esperança, como mulher, de levar uma vida autêntica.
- Foi fácil usar o termo “mulher infértil”, sem refletir, há 15 anos. Mas agora me parece um termo ao mesmo tempo tendencioso e sem sentido, baseado na visão de que a maternidade é a única definição positiva para uma mulher. ↩︎
- Alfred H. Conrad, marido de Rich e pai de seus filhos, se suicidou em 1970. [N. da T.] ↩︎
- 1986: A obra da psicoterapeuta Alice Miller me fez refletir mais sobre esse material. Miller identifica a “crueldade oculta” na educação infantil como uma repetição da “pedagogia venenosa” infligida pelos pais da geração anterior e como a preparação do solo em que a obediência ao autoritarismo e ao fascismo se enraíza. Ela observa que “existe um tabu que resiste a todos os esforços recentes de desmistificação: a idealização do amor materno” (O drama da criança bem-dotada – Como pais podem formar (e deformar) a vida emocional dos filhos. São Paulo, Summus, 1979). Sua obra analisa os danos que a idealização (de ambos os pais, mas especialmente da mãe) sobre a criança a impede de nomear e se queixar de seu sofrimento, o que coloca pais e filhos em lados opostos. Miller destaca: “Eu não posso ouvir minha filha com empatia se no íntimo estou preocupada em ser uma boa mãe; não posso estar aberta ao que ela está me dizendo” (For Your Own Good: Hidden Cruelty in Child Rearing and the Root of Violence. Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1983, p. 258). Miller explora as fontes do que passou a ser definido como abuso infantil – isto é, violência física e punições sádicas –, mas ela se preocupa igualmente com a “violência gentil” na criação de filhos, incluindo aquelas prescrições “autoritárias” ou alternativas, baseadas na negação ou na restrição da vitalidade dos sentimentos da criança. Miller não considera a predominância das mulheres como principais cuidadoras, o investimento dos sistemas autoritários e fascistas em perpetuar o controle masculino da sexualidade e dos direitos reprodutivos das mulheres, ou as diferenças estruturais entre o pai e a mãe como pais. Ela reconhece que, nos Estados Unidos, as mulheres, em especial, “descobriram o poder de seu conhecimento. Elas não se esquivam de apontar a natureza venenosa da informação falsa, ainda que ela tenha sido bem escondida por milênios sob rótulos sacrossantos e bem-intencionados” (For Our Own Good, p. XII). ↩︎