[N.171 | 2025]

Re-escrituras para Cintura Fina

Bárbara Macedo

O professor Luiz Morando começa o livro Enverga mas não quebra com as expressões que a imprensa belorizontina utilizava para se referir à travesti Cintura Fina entre julho de 1953 e abril de 1987. Dentre várias expressões transfóbicas, “taradinho”, “useiro e vezeiro no uso da navalha”, “refinado malandro” e “arruaceiro” eram formas de descrevê-la. Aqui, neste palco, neste corpo travesti, as re-escrevo ajustando seu gênero para aquele em que ela se reconhecia. Nós, travestis, somos mestras da subversão e aqui relocalizo essa ancestrava, que deixou na gente um pouco de tudo que ela era (e é). “Taradinha”, sou, adoro. “Useira e vezeira no uso da navalha”, bom, quando a vida te empurra para algumas situações, aprender a se defender é uma exigência. “Refinada malandra”, quer coisa mais chique que isso? “Arruaceira”, sim, porque eu entendo a gramática da rua, eu falo sua língua, eu a respeito e ela me respeita de volta.

É sabido que a imprensa ainda utiliza a lógica transfóbica para se referir a nós, pessoas trans. Nos matando em suas manchetes mesmo quando o corpo já não respira e o sangue já não circula. Mas me chama a atenção a associação de Cintura Fina a uma malandra, já que naquela lista, além de “refinada malandra”, constavam ainda “malandra incorrigível” – que eu acho lindo – e “malandra”. Somente “malandra”. Mais curiosa eu fico pelo fato de que para a malandra Cintura Fina, a navalha era um signo forte. Nos terreiros, aprendemos que um dos signos das Malandras – ancestrais que baixam nas macumbas sob os nomes de Maria Navalha, Dona 7 Navalhas, Maria Malandra, entre outras – é, justamente, a navalha.

Essas ancestrais carregam a sabedoria das ruas, da boemia, tratam de dinheiro e de amor, trazem boa sorte aos nossos caminhos e dão a ginga certa para a nossa lábia. Costumo dizer que sem a presença das Malandras em nossas vidas, facilmente nos tornamos otárias. Essa sabedoria era muito presente em Cintura Fina – hoje uma das malandras ancestravas – que sempre buscou auxiliar pessoas em situação de vulnerabilidade social. Protegia os subalternizados. Ajudava as prostitutas. Dava caminho a quem fosse possível. Um de seus feitos mais marcantes foi algo que entendo como uma pedagogia do corte: ela ensinava essas pessoas a manusear uma navalha para autodefesa.

Como a maioria da nossa população travesti, Cintura Fina encontrou acolhimento na dimensão espiritual tida como dissidente: as religiosidades afrodiaspóricas – lidas na época como “centros espíritas” (coisa que até hoje perdura) mesmo sendo macumba. Na Belo Horizonte da década de 60, ao buscar uma consulta espiritual, Cintura Fina conhece a dona Naná, dirigente que a acolheu em sua casa. Ali, a travesti virava em seus ancestrais e dava passe às pessoas que estavam em busca de auxílio.

Mais adiante, no ano que ficaria notório pelo golpe militar que culminou na ditadura, Cintura Fina, então com 31 anos, morava na Vila Ambrosina, local onde era conhecida por, justamente, Navalhada. Ninguém ali conhecia Cintura Fina, apenas Navalhada. Seja Cintura Fina, seja Navalhada, ela foi a imagem fiel do que são as Malandras que baixam nas macumbas. Quando vocês pedem a bênção para uma Malandra, é para alguém como Cintura Fina que estão pedindo. Mais uma vez se mostra inegável a nossa relação com a macumba e eu trago uma pergunta: e se a Malandra que estiver te abençoando naquela gira for uma travesti como Cintura Fina? Ela ainda terá o seu “saravá”?