No meio de um luto, na apatia da poeira que se esfarela até baixar, decidi aprender a cozinhar. Aprender a manejar panelas, tempos e temperos é um pouco como aprender sobre meu próprio desejo e criar um livro de receitas sobre o que se faz com isso. Eis aqui a mesa que agora ponho, para que eu mesma coma.
Quero aprender a fermentar legumes, usar missôs, enfiar a faca num corte certeiro, temperar, não comer cru, nem queimar a boca. Sentir o gosto, a textura e o cheiro das palavras. Dizer das nozes-moscadas que ralei mais do que deveria e que, mesmo tão pequenas, roubaram o sabor do meu prato; das águas que ferveram demais e sujaram meu fogão; das comidas suculentas que me lambuzaram.
Colocar repolhos na salmoura por meses e esperar que o tempo ferva as bactérias até que seu ácido produza o chucrute é simétrico a colocar a latência da minha dor em potes e olhar para ela no tempo, transmutando-se de presente em passado. Amolar as facas de carne que cortam no futuro. Depurar as entranhas do animal abatido até limpar o próprio sangue pisado. Lembrar que o álcool sob pressão explode e cospe palavras pelas bordas. Dichavar as ervas com os dedos e salgar o tempero mesmo em meio ao caldo. Desligar o fogo antes que queime e agarre no fundo da frigideira, como quem sabe que é preciso deixar a festa antes que restem apenas louças.