Antes de tudo, deixe-me apresentar-me. Sou a duquesa Labalábá. O nome herdei da bisa e faz referência e presta reverência à Ọya que rege e protege a minha família desde tempos muito antigos, ainda no continente africano. Dela herdamos, também, a coragem, a ousadia, a independência e o trato com a morte. Somos mulheres-búfalo. Trocamos de pele sempre que necessário. Passeamos e dominamos os nove ọ̀run (firmamento) pertencentes à nossa mãe ancestral. Somos da linhagem Ìgbàlẹ̀.
Já no que diz respeito ao título de duquesa, tomei-o para mim. Julguei-me merecedora e eu mesma me nomeei. Hoje, percebo com uma nitidez muito maior que não peguei um feudo e, sim, um fardo, quase impossível de carregar e levar adiante, tamanho é o peso. Cheguei à Ilha do Meio, posteriormente renomeada de Ilha do Medo, lá pelos idos de 1855, quando da epidemia de lepra e cólera-morbo na Bahia. Duas décadas depois da Revolta Malê.
Eu sofria de lepra e todos os que eram diagnosticados com uma das duas moléstias foram isolados nesse lugar, no intuito de tentar controlar o seu alastramento. Fui conduzida para o que posteriormente tomaria para mim como meu ducado, já nas primeiras levas. Lembro-me com muita nitidez desse segundo translado forçado e de como, novamente, a Baía de Todos os Santos me convidava a mergulhar em suas águas quentes e profundas. Parecia uma intimação da ordem do definitivo.
Resisti muito bravamente ao convite, pois já não era só. Contava as últimas semanas de gestação, fruto de um intenso amor vivido no último cativeiro e creio que seríamos muito felizes com o nosso rebento se separados não fôssemos. Mas essa é outra história, para ser narrada em outra hora e ocasião, e não misturada a esse relicário de dores e perdas.
Preciso narrar até a exaustão. A minha esperança é que esses escritos possam chegar a algum porto e, quiçá, servir de documento e denúncia, de registro original de quem viveu as agruras da escravização. Não conseguiria silenciar. Bem que desejava. Quem sabe contando também não minimize esse sofrimento que parece sem fim, essa dor que parece não dar trégua, ainda que passado tanto tempo.
Fui capturada na cidade de Irá, na Nigéria, meu solo de origem. Hoje sou duquesa. Não parece mudar muita coisa em minha sina. Permaneço presa, mais precisamente soterrada nos escombros da única edificação que restou nesse desolado espaço de terra, composto por restingas e manguezais. Vou procurar contar a história do meu ducado à medida que procuro tecer a trama do meu enredo, pois eles se encontram entrelaçados e o mais importante fato que desejo compartilhar aqui também ocorreu nessa ilha que, mesmo cercada de água por todos os lados, não possui água potável, dificultando ainda mais a vida humana. Esse relato, um tanto quanto longo, abarca o tempo e o espaço em que permaneci na ilha e tive o meu filho, Agada Tútù Náà Túndé, a fria lâmina da espada retorna.
Encontro-me presa nos escombros do lazareto, hoje, uma edificação em ruínas. Os ventos que sopram durante a noite por aqui fazem qualquer um perder o sono e a paz para permanecer em estado de vigília. Esses mesmos ventos, também do domínio de minha mãe Ọya, provocam ondas que vêm arrebentar e, com o tempo, fragilizar a sólida construção de pedra, dada a sua insistência durante um longo período. Antes mesmo de a edificação sofrer desgastes irrecuperáveis, portas e janelas foram destruídas e há períodos do dia e da noite nos quais a força da maré é tamanha que invade a fortaleza e sai levando tudo o que encontra pelo caminho, sobretudo, no espaço do porão, onde estou há tanto tempo.
O lugar é escuro, úmido, imundo e fétido. Lama, lodo e morte. Eis do que é feito o meu ducado. Eis a minha herança. Aquela que tomei para mim.
Sei que estamos no início do século XXI, tenho consciência disso. Não perdi a noção do passar da história, mas não consigo sair dessa masmorra e desse tempo que parece ter parado, pelo menos para mim. Muitas vezes, fica tudo muito confuso e embaralhado. Também, não é para menos, são tantas as demandas vividas que não sei como não sucumbi antes.
Muitos mortos eram enterrados na areia da praia sem o devido cuidado e a profundidade necessária, e era constante a descoberta de corpos boiando na limpa baía, pelo menos naquele tempo ela ainda era limpa. Isso quando os corpos não eram levados pelos fortes ventos e pela maré para Itaparica e amanheciam em suas belas praias, causando desespero e terror nos moradores.
Antes de ser o meu ducado, a Ilha do Medo já ocupou várias funções. Dentre elas, a depósito de pólvora, o que, aliado ao terreno de manguezal, ocasionava ou tornava-a muito propícia a explosões, sobretudo, no período da madrugada, quando ocorria o fenômeno do fogo fátuo, tão comum em tais condições. Mas os pescadores e moradores atribuíam a presença do fogo e das explosões à mula sem cabeça, que costumava aparecer, principalmente, em tempos de lua cheia, metade mulher, metade mula, e soltava fogo pelas “ventas”, pelas “fuças”, como diziam por aqui. Reza a lenda, ainda, que os homens que a avistavam e que contavam o que viam perdiam a fala, punidos e impedidos de passar adiante o que presenciaram. Não deixo de crer. Vi coisas por aqui por tempo demais para duvidar do que quer que exista entre o céu e o mar. Mas, das figuras que o povo diz ainda habitar a ilha, o meu ducado, a mula é o menor dos males. Só quem nunca passou uma noite por aqui pode afirmar que a ilha é desabitada. Nas noites de lua cheia, os corpos, ou o que restou deles, começam a gritar como se dor ainda sentissem e devem crer que ainda sentem, mas é só aflição e desespero.
Como ocupo um lugar de destaque nesse nefasto ambiente e como todos os que aqui teimam em permanecer me respeitam, eles vêm até mim para se apresentarem, e os nomes são os mais absurdos e pesados possíveis, embora guardem coerência com a situação. Renomeiam-se de: Casa mal-assombrada, Caminho sem volta, Fim de linha, Castelo de ruínas, Estilhaço de memórias, Destruição, dentre outros que não consigo recordar a terça parte.
Contam, também, que gatos do mato foram soltos ao longo da Ilha para assustar os que cultuavam égúngún (espírito ancestral) em Amoreiras e aqui vinham para deixar os “carregos”. Não existe confirmação se tais informações procedem. Na dúvida, decido por relatar.
Teria tanta coisa para falar ainda sobre o lugar e narrar tantas histórias dos seres que ainda teimam em aqui permanecer, porém não posso mais adiar. Já protelei por tempo demais a narrativa que desejo compartilhar aqui. Sinto-me cansada e repetitiva. Trata-se de uma história de extremo pesar, mas que, se eu não contar, não terei paz. Será mesmo que narrar apazigua? Tenho cá minhas dúvidas.
Aviso que, de agora por diante, só estilhaçadas memórias, fragmentos que nem sempre trarão lucidez e, muito menos, tranquilidade, nem para mim, que narro, nem para você, que faz a leitura, despertando o que parecia, mas só parecia, sossegado.
Lembro-me de que vivia a pedir socorro, gritando: Tire-me daqui! Arranque o que restou de mim! Liberte-me! Estou soterrada! Cave! Estou logo abaixo dos escombros, misturada neles. Tornei-me um. Sou um amontoado de entulhos. Liberte-me! Por favor! Eu suplico! Não consigo ficar mais nenhum tempo por aqui. Preciso seguir.
Não sei quanto tempo se passou! Nem nos instrumentos de contar o tempo dos homens, nem para além deles. Só sei que é tempo demais remoendo esses momentos absurdamente dolorosos.
Ainda não pude partir, empreender a viagem e finalizá-la. Fico lá e cá. Zanzando entre as diferentes dimensões, muitas vezes para além-mar, em busca de notícias dele, meu amor maior, com carinho apelidado de Agada. Transito nas dimensões da vida e da morte. Acredito que, quando souber o que foi feito dele e como ele se encontra, eu possa ir. Não conseguirei antes disso. Não conseguiria.
Sou só dor e desolação. Não suporto mais. Preciso libertar-me do passado que desejo esquecer, se possível for, mas que não creio que seja. Narro para tentar exorcizar esse passado que teima em não passar e se repete todos os dias em minha memória e me acorrenta a esses tempos idos, que teimam em se fazer presentes.
Não estou só. Outros corpos, ou o que restou deles, aqui permanecem, bem como suas almas, que teimam em não partir. E cá estou a me repetir. Cansada, esgotada, exausta, e ainda nem comecei a contar o que desejo. Como é difícil narrar o que não se concebe, o que não se compreende.
Ainda consigo sentir o frio da roupa molhada colada ao corpo quando a maré sobe e avança em direção ao lugar no qual estávamos trancafiados.
E o meu bebê? O que foi feito dele? Para onde o levaram? Eu imploro. Não tragam de volta. Ele não merece essa sina maldita. O leite secou, a mama murchou, não sem antes endurecer e me enlouquecer de dor. Tornou-se pus ou equivalente. O odor é insuportável. Torna mais difícil esquecer do meu filho, como se possível fosse. Se aqui ele ainda estivesse, eu mesma teria dado fim à sua existência, por mais absurdo e forte que pareça essa decisão. Mas não há opção. Não desejo para ele o mesmo fim que eu. Longe disso. As cicatrizes que trago na pele, inúmeras, não sangram, nem infeccionam, mas são menores que o dilacerado das minhas entranhas. Um amontoado de pele negra morta.
Quando fui acometida da doença, o momento do parto já estava próximo. Estava chegando o momento de nascimento do meu primeiro e único filho. Nem imaginava o que estava por acontecer.
As atrocidades e a violência cotidiana adiantaram a hora. Apesar da mudança da lua, redonda, cheia e repleta tal qual o meu ventre, não era chegada a hora ainda, mas as circunstâncias fizeram o tempo chegar.
Dores insuportáveis se alternavam e o meu medo maior era que, no momento de saída da minha criança, a água do mar invadisse o local onde me encontrava e a afogasse, o meu tesouro maior, o que me restou de esperança e de desejo de futuro.
Se soubesse que o fim seria esse, antes tivesse me lançado ao mar durante qualquer uma das travessias: a da Nigéria ao Brasil e a de Salvador à Ilha do Medo. Sempre o oceano a me embalar e a me chamar. Sempre a lúcida Olókun a me convocar para viver com ela, e como é difícil negar uma convocação sua. Muito difícil.
Mudança da lua, alterações na maré e o corpo contraía e dilatava. Ondas sucessivas de dor e pânico se alternavam.
Sentia-me em vibração e em total sintonia com o cosmo. Mesmo com todas as mazelas, medos e receios, sabia da importância desse momento único na vida de uma mulher. Clamava por Ọ̀ṣun, a dona da fertilidade, da gestação que fizesse a minha criança vingar, mas, no momento seguinte, me perguntava quais motivos teria eu para desejar tanto a criança se nem ao menos teria a chance de criá-la, de acalentá-la e de vê-la crescer. O peito doía sem fim. O orí (cabeça) parecia prestes a explodir.
Perdi a consciência por um tempo, creio que relativamente longo. Acordei banhada em ẹ̀jẹ̀ (sangue). O cheiro era forte e provocava náuseas. O vômito era certo e inevitável. Sentia-me exausta, imunda, um trapo.
Procurei pela barriga e encontrei-a vazia, oca, murcha. Eu continuava acorrentada, pendurada nos grilhões presos à coluna, ao pilar de sustentação daquela casa colonial. Em seu porão. Em seu subterrâneo. Embaraçada em pensamentos, pesadelos mórbidos e nefastos. Consciência e inconsciência se alternavam vezes sem fim. Busquei forças para gritar, chorar, e essas faltaram. Estava aniquilada para muito além do físico. Levaram-me tudo. Meu depósito de crença num futuro com esperança. Arrancaram o meu tesouro. Ao lado da poça de sangue e resto de parto, havia um montículo e, novamente, a esperança voltou com todo seu vigor. Desejei acreditar que era o meu bebê, fruto de um amor intenso que parecia eterno.
Não quero saber se tudo isso é muito forte para você e se te enoja. Já disse, vou narrar até a exaustão. Quem mandou acordar quem desejava dormir para sempre, para não despertar e ter que lembrar e enfrentar esse pesado fardo?
Você suportaria tantas e tamanhas perdas? É claro que não! Mas exigem do meu povo que perdoemos, que esqueçamos. Como, se as atrocidades se renovam e nunca nos deram trégua?
Nunca pensei em compartilhar essa história, mesmo porque julgava impossível ser descoberta nesses escombros físicos.
Preciso concluir esta narrativa que tanto me esgota e aniquila. Comecei e vou terminar. Necessito. Agachei-me e fui em busca do montículo, do volume que julgava ser o meu filho. Instantes de ansiedade e insanidade se apossaram de mim com toda sua força.
Quando peguei o volume, ainda nas sombras, na mais profunda escuridão, apalpei e cheirei o que julgava ser o meu bebê, para então descobrir que se tratava tão somente da placenta, do invólucro que servira de abrigo e proteção para a criança ainda dentro de mim.
Sim, era um menino. Uma senhora vidente no translado profetizara. E disse mais, era o meu bisa que retornava para cumprir, ou melhor dizendo, para finalizar uma importante missão que ficara inacabada em tempos outros. Meu filho era um túndé, aquele que retorna. Estava profetizado. Dito, confirmado.
Carreguei aquele amontoado que ainda pingava ẹ̀jẹ̀. Acalentei e ninei como se uma criança fosse.
No auge da loucura, causada pela dor mais profunda da perda, ingeri a placenta com toda a sofreguidão que me era possível. Ainda hoje, ao lembrar, sinto novamente o gosto e a asfixia provocada pelo grande volume ao passar com extrema dificuldade pela glote, acostumada que estava a pedaços menores de alimentos e com melhor sabor que aquele que era de puro sangue. Puro àṣẹ!
Ao ingeri-la, desejava crer que, assim, o meu filho voltaria ao meu ventre. Puro desespero e instinto. Era um ser ferido, profundamente atormentado e cheia de desejo de ficar com ele para sempre.
Meu menino não voltou. Sigo à sua procura, em busca de notícias sobre o seu paradeiro. Sou um corpo feito de pura dor, um relicário de perdas. Rogo todos os dias a Ọya que me restitua a paz e auxilie na superação. Sei que ela ouve e levará para bem longe todo pesar vivido, através dos seus ventos e tempestades, para que eu possa voltar plena e forte como sempre fui em vida, uma mulher altiva e determinada, mas que se encontra, momentaneamente, fragilizada.
Ajude-me, por favor, a encontrar o meu filho e a alcançar a paz e, em troca, poderá ficar com o meu ducado e o meu título, isso se você desejar para si um fardo e não um feudo, pois é disso que se trata esse lote de terra, um peso. Serei eternamente grata.