Filha, 6 anos
O que eu mais gosto de fazer é brincar de boneca. Minha boneca favorita é a que mais se parece com a mamãe.
Minha mãe sempre sabe tudo. O que vamos comer, a hora de brincar, a hora de dormir, por que eu tenho cabelo preto, menos o porquê de meu pai ter ido embora.
Já perguntei mas ela não me conta. Ela diz que ele decidiu e pronto. Pronto como? O almoço sempre está pronto às 12:00 horas, será que ela quer dizer algo como isso? Deu 18:00 horas e ele quis ir embora?
Quanto mais tento entender, mais me perco. Nos primeiros dias pensei que fosse uma brincadeira, algo do tipo papai foi trabalhar, um esconde-esconde aperfeiçoado. Dessa brincadeira que não sei o nome eu não gostei. Quando passou uma semana, duas, três, um mês, percebi que ele não ia voltar. Aí veio o choro, e depois veio a raiva. Por último, veio a sofrida aceitação. Agora éramos só eu e mamãe.
Se eu tivesse um irmão, ele ficaria? Se mamãe tivesse deixado ele ficar de sapato quando chegava em casa, ele teria desistido de ir? Se eu não tivesse feito birra no dia anterior, ele teria ficado mais um dia?
O que me intriga é como minha mãe consegue ficar tão tranquila. Ela não sente falta dele? Não sente rancor? Remorso? Às vezes acho que só eu sei que ele existiu e depois parou de existir.
Mãe
Não faço ideia do que fazer para o almoço. Ovo ou carne? Batata ou salada de cenoura? Purê ou strogonoff? O tempo passa e minha filha pergunta o que vamos comer. Arroz, ovo, feijão e salada de “verdinhos” está bom para ela.
Como posso não saber de nada? Não sei por que o pai dela foi embora. Não éramos o suficiente? Eu não era? Não fui?
Entreguei toda a minha juventude, tempo e dedicação para a nossa relação e a vida que criamos. Como ele pôde simplesmente dar as costas para tudo isso? Tudo que construímos, fomos, somos?
Desde aquele dia que acordei na cama vazia, com seu lado frio e intocado, não paro de perguntar, perguntar e perguntar, e não alcanço uma resposta.
A nossa filha também tem perguntas. Eu ficaria com todas as interrogações se pudesse retirar as dela. Por mais que tente, não tenho respostas a dar. Nisso, também, eu falho.
Não tenho ideia de quando vou tomar jeito e ter resposta para tudo, como minha mãe tinha. Será que ela também fingia? Imagino que sim, ter certeza de tudo é exaustivo.
Filha, 16 anos
Mais um dia acordando cedo, no frio. Mais um café da manhã sem muita conversa entre minha mãe e eu. Mais 20 minutos de caminhada para chegar à escola. Mais uma homenagem sem alguém para recebê-la. Mais um Dia dos Pais sem pai.
Minha mãe tenta e tenta ser mais do que ela já é. Mãe, pai, amiga. Às vezes queria que ela fosse só ela.
Sei o quanto eu a sobrecarrego apenas por ter nascido. Se não fosse por mim, ela teria seguido a vida sozinha depois do que aconteceu. Talvez se casaria de novo e teria uma família normal. Seria feliz, mais feliz do que é hoje.
E eu não teria este buraco no lugar de pai.
Mãe
Sigo sendo o que posso. O que consigo e luto para alcançar. Para que ela não sinta nem um fragmento do que sinto.
Para que ela não se sinta perdida, deixada de lado, esquecida. Para que ela possa sorrir sem se sentir uma impostora. Para que ela possa viver sem um peso nos ombros a forçando para baixo.
Escuto a porta abrir e fechar. Um “bença, mãe” gritado apressado e a porta do quarto batendo. Não mais recebo um abraço toda vez que ela chega da escola como quando era pequena. Não preciso mais arrumar seu cabelo ou ajudar com o dever. Essas perdas me deixam sem rumo. Se não sou mais tão necessária quanto era antes, uma hora vou deixar de ser de vez. Pelo menos ela ainda me deixa fazer o café.
Filha, 26 anos
Finalmente o que perdi não me assombra. Depois de passar a vida inteira com essa mancha em forma de falta, eu a limpei. Limpei, calcifiquei, purifiquei, lavei, queimei.
Sem ela, consigo ver a fortuna do que tenho – fortuna, sorte, riqueza. A família que me sobrou e que, com ela, fiz do partido um inteiro.
Minha mãe sempre resoluta. Firme nos momentos em que eu me balançava. O ponto do qual eu saía e para onde sempre voltava. Meu arrependimento é não ter entendido isso antes, antes de pensar o que pensei e falar o que falei.
Também sou mãe agora, o que me faz entender e não entender. Há uma batalha entre a eu que viveu só como filha todo esse tempo e a eu que nasceu como mãe há algumas semanas. A filha questiona, duvida, contesta, discute. A mãe acolhe, aceita, aprova, acredita. Duas vidas vividas em condições próximas mas ainda tão distantes, que perdem a luta de se manterem separadas.
Mãe
Dever cumprido. Minha pequena filha cresceu. Eu a vi se tornar mulher e me tornei uma avó. Criei e fui criada.
A minha maior e mais recorrente prece foi para que ela não fosse como eu. Que vivesse a vida como quisesse. Sem olhar para trás e se arrepender, como eu ainda faço.
Ela já tem duas meninas, tão lindas quanto ela era, tão sapecas também. O sorriso que as duas me dão me lembra de um tempo em que era minha filha e eu. Das birras não sinto falta, ela que lide com as dobradas. Morro de vontade de rir quando elas a respondem do mesmo jeito que ela me fazia. Finalmente, fui vingada.
Penso no futuro. Me preocupo. Sei que não vou viver para sempre e isso me assusta. Vivi e não vivi. Só há uns anos comecei a morar sozinha e a me conhecer. Descobri que gosto de tomar banho com a luz apagada e com música tocando. Gosto de cozinhar tarde da noite e encher a comida de pimenta. Gosto de dormir com a porta trancada, sem coberta e com uma vela acesa na mesa de cabeceira. Anos vivendo sem saber me conhecer. Anos vivendo como coadjuvante da minha própria história. Sem tempo para desenvolver interesses além do que limpar e cozinhar em seguida. Sem tempo para parar e dizer: Hoje eu não faço nada! Sem tempo para viver amores e amizades, que enchem a rotina da gente de novidade e euforia. Sem possibilidade de ser apenas eu. Por isso, tenho medo.
Não quero perder essa vida meio vivida.
Filha, 50 anos
Mãe, te perdi. A raiva que senti todos aqueles anos voltou. Ela se mostra em momentos comuns.
Quando arrumo o cabelo da minha do meio, sua neta, para a escola e lembro de quando você o fazia em mim. Quando vejo na tv a propaganda da novela que você revia. Quando minha primogênita diz algo que me lembro de ter gritado para você na minha adolescência.
O mundo em que me deixou ainda é o mesmo. Mas eu não sou. Tive mais um filho que você não chegou a conhecer. Um menino numa família de mulheres. Desde que meus filhos nasceram sinto que estou falhando. Falhando em não ser como você. Falhando em ser tão parecida com você.
Encontro depois de anos e anos a minha antiga boneca favorita. A que mais se parecia com você, minha mãe. Sinto meu peito pesar e meus olhos arderem. Também queria encontrar você num acaso fortuito. Ver a cor de suas unhas que sempre estavam pintadas, segurar suas mãos calejadas e lhe dar um abraço apertado; rir de suas palavras ditas em momentos de raiva, escutar suas histórias do passado e pensar em como você viveu antes e depois de mim.
Me pergunto se onde você está é um bom lugar. Se me vê e vê seus netos. Se ainda zela pela gente. Se ri quando digo para os meninos que você vai vir puxar o pé deles se não me obedecerem. Se revira os olhos quando digo para alguém pela milésima vez que a sua comida era a melhor. Se xinga quando deixo de lavar a louça tarde da noite, porque eu lembro do quanto ir dormir com a pia limpa para o outro dia era sagrado para você. Se chora quando choro desconsolada sem saber o que fazer em seguida.
Penso no tanto de coisas que não sei e me pergunto se você também não sabia.