Mistah Beauty[1], a autobiografia de uma mulher ex-de cor. Cenas selecionadas de um filme nunca lançado de Oscar Micheaux, Harlem, anos 1920
Se a vida de Gladys Bentley estivesse em um filme de Oscar Micheaux[2], esse filme abriria com a tomada de um cortiço de três andares na Filadélfia, onde a artista cresceu. Quatro meninos brincando na viela atrás do prédio. A câmera focaria no mais velho, distinguindo-o dos demais como o protagonista do filme, mas sem exagerar qualquer diferença entre ele(2) [3]e os outros. Nada na forma como ele salta do alto da escada ou empurra o irmão, o que o faz cair e gritar pela mãe, estabelece ou fixa as categorias “menino” ou “menina”, “irmão” ou “irmã”. Ou a história pode começar mais cedo, com um par de mãos vazias preenchendo a cena, mas separadas do corpo e suspensas no ar, expectantes. Então uma tomada da jovem mãe olhando com indiferença para uma criança que ela não pode amar e se recusa a abraçar, numa cena em que a rejeição seria pontuada ou ressaltada por uma música dramática, que anunciaria que esse abraço fracassado se trata de um evento, um momento significativo, um ponto nodal da história que se desdobrará. Um gesto melodramático, como o olhar abatido da mãe, um olhar desviado, ou testa apoiada nas palmas das mãos enquanto ela soluça transmitiriam sua angústia. Ou uma longa tomada da mãe se afastando do bebê aninhado nos braços estendidos do seu marido.
A autoaversão ficaria aparente em seu rosto conforme ela dá as costas para a criança, sua primogênita, que jamais seria capaz de amar. Aquela que sempre lhe lembraria de que ela não era uma mãe boa-o-suficiente. Doeria demais dizer as palavras mãe ruim, mesmo quando o fato não podia ser evitado. A próxima cena poderia ser filmada nas sombras, e nós nos esforçaríamos muito para discernir a figura escura no quarto mais escuro ainda, até a porta ser escancarada e a luz inclemente do corredor inundar o quarto sem janelas; então veríamos um andrógino de catorze anos deitado na cama estreita, vestido com o terno de domingo do irmão e perdido em um sonho desperto sobre a professora do terceiro ano que ele ainda amava loucamente. Antes que pudesse abrir os olhos e se arrancar da fantasia dos braços, dos beijos dela, e voltar para o quarto escuro e abafado, ele seria exposto e censurado. Próxima cena, close fechado na carta escrita pelo adolescente aflito de dezesseis anos nas primeiras horas da manhã, endereçada ao pai e à mãe, explicando que ele estava a caminho de Nova York, que não podia mais morar em casa; não podia fingir que era a filha que sua mãe nunca amaria, ela só podia amar um filho, e ele tinha se tornado um. Mas ainda assim ela fracassou em amá-lo. O longo e objetivo olhar da câmera enquanto ele atravessa o corredor, deixa furtivamente o prédio com tudo o que possuía guardado numa mochila, o que não era muito, e então fecha a porta sem fazer nenhum barulho.
[1] Personagem do conto “The Adventures of Kit Skyhead and Mistah Beauty”, de Eric D. Walrond, publicado na revista Vanity Fair em 1925
[2] Essa esquete é baseada no ensaio autobiográfico de Bentley, “I Am a Woman Again”, Ebony Magazine, ago. 1952.
[3] Nesta seção, uso o pronome masculino para me referir a Bentley em respeito a sua identificação masculina. Ele não se sentia como uma mulher nem se via como uma mulher durante aquelas décadas. Em “I Am a Woman Again” [Voltei a ser uma mulher], ele descreve a terapia hormonal da qual precisou se valer para se transformar em uma mulher. Para mim, isso deixa claro que ele havia abandonado as categorias “mulher” e “feminino” décadas antes, e justifica o uso de “ele”.