Minha mãe lavava roupa em casa de rico e eu ia junto pra não ficar sozinha. Ela mentia pra patroa, dizia que era pra eu aprender o serviço. Quando a mulher saía, ela pegava um livro na estante e me entregava.
Esquece tudo o que eu falei e lê. Não quero sua mão engelhando feito a minha de tanto lavar roupa pros outros. Quero tua mão cheia de calo de tanto escrever e tua vista cansada de ler. Toma, pega logo esse livro. Anda, tira o lápis e o caderno da bolsa e escreve teu nome completo dez vezes.
Não, dez é pouco, cinquenta. Depois escreve o meu também.
Mas pra quê, mãe?
Pra ficar com caligrafia boa. Professora tem que escrever bonito pro aluno entender. Anda, vai logo, que eu vou lavar roupa lá atrás. Não mexe em nada, ouviu? Se o patrão chegar, esconde o livro e me chama. Ele é sério e não gosta de gente preta. Ele também não deve gostar de criança, ainda mais pobre. Se ele chegar, abaixa a cabeça e não encara ele nos olhos, ouviu?
Fiz que sim. Depois sentei no chão da sala, com medo de sujar o estofado. Ela não viu a hora que o patrão entrou — ele abriu a porta baixinho — chegou mais cedo e ficou me encarando, de olho em mim, no meu vestido, enquanto minha mãe estava lá dentro trabalhando, na área de serviço. Não viu a hora que ele baixou as calças e disse chupa. Ela não me viu obedecendo o estranho. Não viu aquilo na minha garganta, o tremor nas mãos, o medo no peito, a boca tapada, querendo enguiar. A cabeça baixa, do jeito que ela mandou.
Vomitou no tapete da sala. Ele subiu as calças depressa. Minha mãe ouviu um barulho, lá de dentro, e veio correndo. Eu, inerte, sem voz, sem grito, ouvi ele me xingar, dizer que eu era uma menina nojenta, que só podia ser filha de preta, que tinha deixado meu cheiro imundo pela sala e que era pra minha mãe não me levar mais lá.
Pouco tempo depois, quando me viu me cortando, mordendo o punho até sair sangue, minha mãe não soube o que fazer, nem poderia.
Calma, filha.
Mas eu não tinha fé.
O que eu faço, meu Deus do céu?
Tem que levar essa menina pro médico, antes que aconteça uma besteira pior, a vizinha disse.
Não levo. Não vou deixar empurrarem remédio na menina, tratarem que nem louca. Um doutor que nem olha pra cara dela, enfia uma receita e passa remédio caro, não vou.
Vai fazer o que com ela, então?
Vou dar papel e caneta. A menina vai escrever.