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Estão reunidos nesta curadoria textos de quinze mulheres-mãe-negras, convidadas a publicar no site do projeto ELAS. Parte-se da constatação que a maternidade negra segue sub-representada na discursividade nacional (na literatura e para além dela), ainda que haja relevante produção literária de autoria mulheres negras desde, pelo menos, o século XIX. A proposta é dar a ver a riqueza e pluralidade das transfigurações do “ser mãe” pelas escritoras convidadas. As mulheres aqui presentes apontam também para muitas outras que concebem a maternagem como questão, suspensão e atualização de um percurso ancestral.
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.: Com-a-maré
Com-a-maré
Fabiana Carneiro da Silvaler: Com-a-maréa maré subiu, sobe maré
a maré desceu, desce maré
A despeito de constar como tópica relevante na produção literária de mulheres negras desde o século XIX, haja vista a obra da precursora Maria Firmina dos Reis, a maternidade negra segue sub-representada na discursividade nacional […] -
.: Um dia, você há de se lembrar
Um dia, você há de se lembrar
Aline Cardosoler: Um dia, você há de se lembrarUm dia, quando você sentar na beira da calçada para amarrar o cadarço dos sapatos, há de lembrar-se de mim, ajoelhada, diante de você. Calço seus pés, miro-lhe o riso, lavo o seu corpinho preservando beneditinamente cada instante. Há de achar que eu nunca tive um medo. […]
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.: Ela cresce
Ela cresce
Anajara Tavaresler: Ela cresceFoi ontem que aquele cheiro
Invadia as minhas narinas
E ela saía das entranhas de mim…
Coroou-me minha menina. Não tem muito tempo que ela, semente,
Se encaixava perfeitamente
Entre meu seio farto e o umbigo,
E mal pesava na cunha de minhas mãos,
Seu novo abrigo. […] -
.: Eu carrego tudo o que sou pelo meu ventre
Eu carrego tudo o que sou pelo meu ventre
Analu Cristinaler: Eu carrego tudo o que sou pelo meu ventreToda a dor do passado
as sementes germinadas
no útero de minhas avós
nutridas com seu sangue
suas lágrimas e sua força
eu carrego
os frutos de sua carne
galhos
trilhas tortuosas
tronco firme também […] -
.: Do desfiar ao tecer – Manto materno
Do desfiar ao tecer – Manto materno
Assunção de Maria Sousa e Silvaler: Do desfiar ao tecer – Manto maternoMinha avó Salu tinha um ofício cuidadoso. Quando menina, trabalhava no roçado: roçava, semeava, colhia, quebrava coco… Quando jovem, casou-se, teve cinco filhos e, com a reviravolta do tempo, ficou viúva e voltou à roça para sustentar os filhos, à mesma labuta na agricultura e pecuária […]
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.: [O relógio…]
[O relógio…]
Barbara Uilaler: [O relógio…]O relógio
seguindo passos de
antes –
sufocou feridas.
Pedaços da renda da
toalha de mesa embranquecendo
o assunto do almoço
o vai e vem de panelas fumegantes
pra embalar uma fome ancestral […] -
.: A ira da filha de cam continua
A ira da filha de cam continua
Daisy Serenaler: A ira da filha de cam continuaA ira da filha de cam
parece perda de palavra
que
mucama
num é quem ama
é qual a
mulata
bicho que se quer
domesticado […] -
.: Canções puerperais
Canções puerperais
Daisy Serenaler: Canções puerperaiseu queria escrever uns versos pra matar o tempo, a saudade, a vontade. pra saciar a sede, o desespero, a febre, o silêncio. eu queria escrever umas palavras ainda que soltas, qualquer coisa que me lembrasse que eu ainda tô aqui, aqui, aqui dentro, como eu tô fora, fervendo.
mas meu filho acordou dez vezes […] -
.: Da dor e do amor
Da dor e do amor
Dulci Limaler: Da dor e do amorNascemos. Em abril de 2013, minha filha e eu nascemos, ela para o mundo e eu como mãe. Nunca almejei ser mãe, não sonhei ter filhos. Gostava mais das brincadeiras de rua e de professora do que de bonecas. Amava mesmo os livros!
Minha filha foi um acontecimento inesperado, resultado de um amor não correspondido […] -
.: Relicário
Relicário
Hildália Fernandesler: RelicárioAntes de tudo, deixe-me apresentar-me. Sou a duquesa Labalábá. O nome herdei da bisa e faz referência e presta reverência à Ọya que rege e protege a minha família desde tempos muito antigos, ainda no continente africano. Dela herdamos, também, a coragem, a ousadia, a independência e o trato com a morte. Somos mulheres-búfalo. […]
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.: Filho
Filho
Jeovânia P.ler: FilhoTendo filho
Filho não se deixa de ser
Só não se é mais o centro
O centro
O umbigo
Passa de lado
Vai para o filho […] -
.: Definir-se mãe em tempos de pandemia
Definir-se mãe em tempos de pandemia
Josinélia Chaves Moreiraler: Definir-se mãe em tempos de pandemiaNo dia 04 de julho de 2017, dois traços vermelhos me enunciavam Mãe. A palavra mãe, ainda em processo, ecoou, rasgou e feriu-me como uma navalha, enquanto tentava não acreditar no que via. Palavras pularam da minha cabeça, me olhando e insistindo em me penalizar, em me asfixiar: camisinha, pílula do dia seguinte, anticoncepcional – […]
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.: Poema para sonhar amanhã
Poema para sonhar amanhã
Luana Antunesler: Poema para sonhar amanhãA casa dorme, meu filho dorme. Sonha o meu filho? Alinho as palavras tortas na esperança de ver nascer um milagre para mulheres-meninas, mulheres-anciãs, mulheres-passarinhas. Cá dentro, inauguro um tempo infindo, de memória, benção para curar os olhos da guerra,
Mamãe, Kiev também é aqui? […] -
.: Sobre morrer
Sobre morrer
Luana de Oliveiraler: Sobre morrerQuantas vezes você já morreu? Minha vó costumava dizer que a gente que é pobre já nasce morrendo. Se for mulher então, aí é que fica pior: nasce culpada e morrendo. Eu cresci com isso martelando na minha cabeça. O que seria pior? A culpa ou a morte? Até hoje, não sei. Na primeira vez […]
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.: o pente de iara
o pente de iara
Marina Fariasler: o pente de iaraiara acordou com muito sono naquela manhã fria de terça-feira. ou seria quarta? a mente ainda embotada pela noite mal dormida não soube precisar o dia da semana. mas também, depois de mais de cem dias nesse enclausuro, todos os dias parecem o mesmo, pensou enquanto olhava o bebê dormindo ao seu lado na cama. […]
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.: uma dois
uma dois
Marina Fariasler: uma doisgosto de brincar com miguel, pegá-lo no colo e fingir que estou ninando um bebê, apesar de o menino mais velho já estar beirando os onze anos. num dia, raul, o menino mais novo, que estava por perto, sorriu desconfiado ao ver a cena e veio correndo tentar se juntar a nós naquele aconchego. […]
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.: O segundo nome de nenê
O segundo nome de nenê
Marina Fariasler: O segundo nome de nenêas mãos trêmulas de elza seguraram o bebê que acabara de nascer. antes que o corpinho lambuzado de sangue e vérnix encostasse o chão de terra batida, ela aparou a criança e a encaixou no meio dos seios. o choro silencioso da mãe, entrecortado pelo choro recém-nascido da filha, ambos abafados pelos trovões […]
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.: Ao For, Ria
Ao For, Ria
Priscila Obaciler: Ao For, RiaQuando eu for
Não me mande notícias
de seu choro
Me deixe lá
A culpa já me liga a cada minuto
Inunda cada poro em lágrimas
E leva qualquer marca de prazer […] -
.: Menu da separação
Menu da separação
Priscila Obaciler: Menu da separaçãoQuando a Mãe já não é o prato principal
os filhos viram degustação de 15 em 15 dias. […] -
.: mãe/solo/fértil
mãe/solo/fértil
tatiana nascimentoler: mãe/solo/fértileu não sou
virgem, nem santa, nem sou s
agrada, mas tive o ventre
livre feito terra farta pra
feitura do mistério
(ele está no meio de nós
entre os lapsos, des
compassos, dist
ânsia & how
dare you […]