[ arquivo ]
Penso sobre o corpo e os limites que ele pode atravessar, guiado pelo desejo. Sobre o meu corpo e o de tantas outras que, transgredindo o mito de origem, arriscaram outras alquimias.
Eu me norteio pela angústia da pergunta: o que pode um corpo negro para si? O que faz uma negra além de entregar seu corpo ao trabalho e lambuzar a fome dos homens?
Esta curadoria reúne textos de quinze mulheres negras que, por meio de suas palavras, reinventam os sentidos do corpo – corpos que agora narram suas próprias alquimias, desejos e liberdades. Negras que contam sobre maternidade, sobre amor, sobre o amor das outras, sobre a dança que o corpo faz.
-
.: Desejar é revide
Desejar é revide
Marina Apolinárioler: Desejar é revidePenso sobre corpo. Penso sobre o corpo nas minhas lembranças de infância – de quando ele brincava dócil na casa patroa, do choro das estrias por ter crescido demais, do incômodo pela chegada dos peitos que atraíam olhares, do olhar torto quando cheguei nos brancos e contrastei minha pele. Penso sobre corpo, no pudor da […]
-
.: Mesmo com medo
Mesmo com medo
Beatriz Lobatoler: Mesmo com medoQuando pequena, eu sentia o frio na barriga ao pular de um lugar alto, subir na torre onde ficava a caixa d’água no terreno do meu avô. Era divertido explorar o mundo olhando de cima, com aquela sensação agitada de saber que bastava segurar firme e tudo ficaria bem. […]
-
.: Oração
Oração
Ceres Soares Bifanoler: OraçãoQue meu corpo se livre do peso da impossibilidade de atender ao desejo do outro.
Que meus braços abracem o mundo e por enquanto alcancem um pouco, mas apenas um pouco além do que eu acreditava ser possível.
Que minhas mãos teçam, amassem, moldem, pintem, escrevam, que meus dedos apontem, entrelacem.
Que meus olhos repousem […] -
.: A contagem dos sonhos [fragmento]
A contagem dos sonhos [fragmento]
Chimamanda Ngozi Adichieler: A contagem dos sonhos [fragmento]Um fio branco solitário, com um leve brilho. Estiquei-o completamente, soltei e depois estiquei de novo. Não arranquei. Pensei: Estou ficando velha. Estou ficando velha, o mundo mudou e ninguém nunca me conheceu de verdade. Uma torrente de pura melancolia encheu de lágrimas meus olhos. […]
-
.: Canção para ninar menino grande
Canção para ninar menino grande
Conceição Evaristoler: Canção para ninar menino grandeE depois, no decorrer de minha conversa com ela, quando já estávamos nós duas somente, foi que entendi. Era dor sim, a maior. E Juventina sabia qual. Dor de amor, ela me contou mais tarde. Não que estivesse apaixonada. Não, não mais. Não mais. Agora ela só era Juventina. Paixões eram do tempo que ela […]
-
.: Cartas a uma negra [fragmento]
Cartas a uma negra [fragmento]
Françoise Egaler: Cartas a uma negra [fragmento][…] onde moro, são cinco pares de pés para calçar, dez braços gelados para abraçar o meu pescoço, cinco cabeças que continuam a repousar no meu peito, embora eu force a barra para achá-los grandes demais e sabichões demais para isso. […]
-
.: Notas sobre a fome [fragmento]
Notas sobre a fome [fragmento]
Helena Silvestreler: Notas sobre a fome [fragmento]Eu sei sobre a fome, porque já a senti me atravessar as veias – isso que as pessoas daqui aprenderam que tinha o nome de fome. Conheci o buraco vazio que avança, engolindo todas as beiradas de um desejo que não nasce na cabeça e que precisa de comida, tão forte é esse desejo. […]
-
.: Mãe ou Filha?
Mãe ou Filha?
Izabella Amoraler: Mãe ou Filha?A verdade é que em todos esses anos eu muito escrevo sobre ser mãe e quase nada sobre ser filha. Talvez porque ainda não tenha encontrado caminhos confortáveis para remexer no meu próprio líquido amniótico. Talvez porque na maternidade eu encontre um poderoso caminho de autoconhecimento que no lugar de filha ainda não encontrei. É […]
-
.: Auto amor
Auto amor
Jovina Souzaler: Auto amorAbro-me para os prazeres do mundo,
das auroras e das estrelas. Com eles faço a cama onde me deito.
Caso fiquem ainda os espinhos da vida,
sou minha própria mãe, acaricio meus pés,
lavo o corpo com alfazema, begericum
e folhas de arruda para o afago das Deusas. […] -
.: Trilogia do amor
Trilogia do amor
Lenise Reginaler: Trilogia do amoro morno
darão de comer às crianças-livres
na escuridão de suas mães
desde a antiguidade. […] -
.: É para eu ir?
É para eu ir?
Letícia Lopes de Souzaler: É para eu ir?Sei que está animada, nervosa, e deve ser por isso que não está me enviando mensagens. Só me manda, pelo menos, o endereço. Você sabe que eu sempre chego. Já me disse qual roupa devo usar e eu já prendi o meu cabelo, do jeito que me pediu quando fez o convite pela primeira vez. […]
-
.: Receita de despedida
Receita de despedida
Marina Apolinárioler: Receita de despedidaQuero aprender a fermentar legumes, usar missôs, enfiar a faca num corte certeiro, temperar, não comer cru, nem queimar a boca. Sentir o gosto, a textura e o cheiro das palavras. Dizer das nozes-moscadas que ralei mais do que deveria e que, mesmo tão pequenas, roubaram o sabor do meu prato; das águas que ferveram […]
-
.: Use o Alicate Agora [fragmento]
Use o Alicate Agora [fragmento]
Natasha Felixler: Use o Alicate Agora [fragmento]1. Que bom é não estar. […]
-
.: Niketche, uma história de poligamia [fragmento]
Niketche, uma história de poligamia [fragmento]
Paulina Chizianeler: Niketche, uma história de poligamia [fragmento]E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa – sua esposa – intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção de uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão […]
-
.: corpo dourado em dendê
corpo dourado em dendê
Steffane Santosler: corpo dourado em dendêum corpo que inventa suas rotas de fuga, sua vista clara, seu desejo ácido, que descobre a si mesmo como salvação, enquanto nega as mãos brancas que se aproximam. que resgata a si próprio, que quando sem saída entende-se como um corpo que gira, que roda e que circula. […]
-
.: cuíer paradiso
cuíer paradiso
tatiana nascimentoler: cuíer paradisoo paraíso cuíer podia ser um lugar muito simples:
encostar a cabeça no meio das suas teta, ou
te receber no meio das minhas coxa […] -
.: Invento de gente [fragmento]
Invento de gente [fragmento]
Ventura Profanaler: Invento de gente [fragmento]Terezinha teve 16 filhos homens, com 16 pais diferentes.
Só parou de parir quando Aline nasceu.
Seu primeiro neto morreu no parto.
Terezinha fugiu com o pequeno defunto numa caixa de sapatos.
Não tinha dinheiro pra pagar os serviços funerários. […]