[N.185 | 2025]

Palavra dissidente

Dri Galuppo

Segundo a filósofa e pensadora Judith Butler, gênero não é um substantivo, algo que as pessoas têm, tampouco é um papel social. Gênero no campo da performatividade é um verbo, ou melhor, é um conjunto de atos e não o fazer de um sujeito que se supõe existir antes do verbo. Não há sujeito anterior. Gênero é uma fabricação que não pressupõe o sujeito anterior nem o ato individual e voluntário.

A performatividade, segundo a autora, é um conjunto de atos que têm referencialidade no campo normativo, e só existe compartilhada no outro. Não se trata de um indivíduo, mas de um sujeito social. Somos chamados de nomes, vivemos em um mundo de categorias e descrições bem antes de agirmos criticamente e de tentarmos mudá-los e torná-los nossos. Dessa maneira, estamos todes, apesar de nós mesmes, vulneráveis e afetades por discursos que nunca escolhemos.

Que nunca escolhemos.

Mas a palavra, esta que nos condena, nos trancafia em destinos e nos mata, poderia também nos salvar? Poderia nos levar de passeio a uma praia de águas quentinhas? Ou ao menos dizer de nossa existência ao produzir arquivos orais, contar a história de outra maneira ou fabular novos mundos onde possamos caber sem tanto risco?

As normas dependem de uma atualização recorrente, constante e supostamente infalível, mas é nessa atualização que podemos encontrar outras formas de gênero. Formas que podem interromper esse processo mecânico de repetição, desviando, re-significando e, às vezes, quebrando as correntes citacionais de normatividade. Abrem-se assim espaços para novas formas de vida de gênero, brechas para um hackeamento e uma rasura neste sistema.

Para além do léxico da norma que em qualquer língua tratará de antecipar quem somos, mesmo antes de nascermos, penso especificamente em nossa língua, derivada do latim, que articula os gêneros de maneira impregnada em quase todos os vocábulos, fazendo com que reforcemos ainda mais o binarismo.

No entanto, podemos desconstruir a linguagem – onde houver opressão, encontrar outras palavras, subverter as palavras já existentes, modificando-as ao nosso dispor. E é isso que nós, dissidentes, muitas vezes fazemos – criar e trocar artigos e modificar seus usos, ressignificar insultos, criar dialetos. Ao atentar para a linguagem posso estar mais distante de uma antecipação e mais perto de uma emancipação. Posso ainda nomear e não apenas ser nomeade.

Quando fui convidade para fazer a curadoria de escritoras queers, pensei de imediato nos slams e nas batalhas de poesia, embora não tenha me limitado a eles. Os slams são campeonatos de poesia falada que surgiram em Chicago (EUA) nos anos 1980 e chegaram ao Brasil há mais de dez anos. Poetas inscrites apresentam poemas de sua autoria respeitando um limite de tempo. Ao final, as performances são julgadas por cinco jurades selecionades na plateia. Poesia autoral, escrita para ser dita, que ganha o mundo em campeonatos nacionais e internacionais e que traz em seu gesto a ousadia de subverter a própria linguagem em rimas que trafegam pela escrita de si, a crítica, o ativismo e a mobilização social e poética.

Assim, fui atrás de poetas que já conhecia de campeonatos e batalhas que presenciei e de outres conhecides pelo trabalho nessa arte. Fui também atrás de escritoras que já conhecia por meio de livros, zines, oficinas de escrita e dos motins que se formam por pessoas da minha comunidade e aliades que querem juntes fabular e criar novas visões de mundo. Escolhi trazer uma maioria de vozes que vibram fora das páginas dos livros publicados tradicionalmente e também escritoras e artistas que, mesmo já publicadas, somariam ao coro dissidente que entoa novas melodias para ninar o encontro entre passado e futuro num lampejo que só o presente consegue ajuntar.

São escritos que não se limitam a tratar de gênero e sexualidade ou de nossa luta por uma vida mais vivível, mas que certamente, em sua maioria, traduzem o que é o mundo a partir disso. As noções de família, amizade, lar e vivência romântica surgem em narrativas cuja sensibilidade e vocabulário carregam, na maior parte das vezes, a coexistência com temas como raça, classe e, mais recentemente, idade. E não poderia ser diferente: estar atente e forte o tempo todo também abre os olhos e o coração para as interações de fatores sociais e para as alianças. Sem elas não existiria chance de prosseguir.

Por fim, um tema muito caro para nós costura tudo isso: a ancestralidade. Hoje mais do que nunca, buscamos, revisamos, descobrimos, criamos e perseveramos na guarda de arquivos para que nunca esqueçamos que sempre estivemos aqui. Nossas táticas, estratégias, métodos e modos de existir ficam assim guardados por esses arquivos que ao mesmo tempo nos alicerçam e nos lançam em direção ao desconhecido do qual nunca tentamos fugir.