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.: Coisas que não quero saber [fragmento]
Enquanto eu mordia a polpa doce e alaranjada do damasco, peguei-me pensando em algumas mulheres – na verdade, nas mães que ficavam no pátio da escola junto comigo esperando a saída dos filhos. Agora que éramos mães, éramos todas uma sombra de nossa antiga existência, perseguidas pela mulher que costumávamos ser antes de termos filhos. Não sabíamos o que fazer com ela, essa moça impetuosa e independente que nos seguia para todo lado, gritando e apontando o dedo enquanto empurrávamos o carrinho de bebê debaixo da chuva inglesa. Tentávamos retrucar, mas nos faltava a linguagem para explicar que não tínhamos simplesmente “adquirido” um filho – tínhamos nos metamorfoseado (um corpo novo e pesado, leite nos seios, programadas pelos hormônios para correr até nossos bebês quando choravam) em alguém que não compreendíamos de todo.
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.: Dezessete anos [fragmento]
Minha mãe veio à clínica. Nunca falaremos do que aconteceu naquele dia. Nem antes, nem depois.
Eu e minha irmã ainda rimos de quando ela tentou conversar com a gente sobre menstruação. Tínhamos uns dez anos e ela nos interpelou apressada, escondida no vão da porta da cozinha.
– Ah, meninas, vocês sabem o que é menstruação?
Desatamos a rir. Ela pareceu tão desconfortável.
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.: Caderno proibido [fragmento]
Esta noite me sinto sob o peso de uma grave humilhação. Talvez por ter feito uma coisa que até agora eu jamais tinha ousado fazer; ou melhor, não havia sequer imaginado poder fazer. Estávamos sentados na sala de jantar e Michele escutava o rádio; uma música que me fazia sentir leve, sonhadora, me comovia. Não sei que coisa me impeliu a falar; encontrava-me sob o influxo de uma força mais poderosa do que eu, à qual não podia, ou talvez não quisesse, resistir.
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.: Marés
Falar sobre maternidade é como atravessar as dunas de areia sobre pernas de pau. É preciso encontrar um equilíbrio entre as ideias e compreender sensações até então desconhecidas; permitir ser invadida por uma enxurrada de lembranças e reconhecer tantos sentimentos “à flor da pele” – que transbordam diariamente. Organizar isso em palavras não é simples – faz o outro me ver.
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.: As pequenas virtudes [fragmento]
No que diz respeito à educação dos filhos, penso que se deva ensinar a eles não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber.
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.: Quarto trimestre
sonho com uma praia de areia e luzes vermelhas e pessoas esperando o início de um evento. inquieta, eu percebia que estava ali há muitas horas e não tinha deixado leite para Ícaro. alguém dizia para não me importar com algo assim, que ele ficaria bem onde estivesse. eu seguia receosa e sentindo culpa.
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.: Lili – novela de um luto [fragmento]
Ela adorava minhas mãos, os dedos finos e uma coisa que eu não entendia e que ela admirava: como as falanges superiores dos meus dedos se dobravam. Ela detestava que seus dedos fossem duros e inflexíveis. Engraçado reparar nisso.
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.: Pero las madres sabemos que no – Um coro de leitoras
Queria escrever um email para meu filho de três anos. Não como correspondência para o futuro ou exercício de elaboração do turbilhão de emoções que ele me desperta. Meu desejo vem da aposta nas palavras escritas e lidas. Um êxtase em vislumbrar alguma legitimação, um ponto de encontro em nossos caos, mesmo sabendo que nunca haverá compreensão completa.