[ arquivo ]
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.: O papel de parede amarelo [fragmento]
Faz duas semanas que estamos aqui e não tive vontade de escrever desde aquele primeiro dia.
Agora estou sentada junto à janela, neste atroz quarto infantil, e não há nada que me impeça de escrever o quanto queira, exceto a ausência de forças.
John fica fora o dia todo, às vezes também à noite, quando os casos são mais graves.
Fico contente que meu caso não seja grave!
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.: A fotografia e a maternidade negra
O legado duradouro da escravidão nos corpos das mulheres negras nas Américas resultou, de forma visível, em algumas das taxas mais baixas de amamentação e, o que é ainda pior, em uma crise de mortalidades infantil e materna. As disparidades raciais que persistem ainda hoje (sobretudo na área da saúde) são efeitos em cascata da propagação das incontáveis violências físicas, psicológicas e sexuais sofridas pelas mulheres negras por séculos, enquanto desempenhavam funções domésticas e agrícolas na condição de escravizadas.
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.: Da casa de Iemanjá
Minha mãe tinha duas caras e uma frigideira
na qual ela preparava suas filhas
para serem meninas
antes de cozinhar nosso jantar.
Minha mãe tinha duas caras
e uma panela quebrada
onde ela escondia uma filha perfeita
que não era eu
eu sou o sol e a lua e eternamente faminta
pelos olhos dela. -
.: As alegrias da maternidade [fragmento]
Ainda estava tomada por esses pensamentos sinistros, contando a féria do dia, quando ouviu os gritos de saudação das esposas do senhorio, que ainda não haviam entrado para suas casas.
“Sejam bem-vindos, nossos heróis!”.
As crianças correram para fora para ver quem havia chegado. Nnamdió foi junto, misturado às pernas deles, e Nnu Ego alertou: “Cuidado para não derrubar o irmãozinho de vocês”.
“Mãe! É o pai! Nosso pai! Ele voltou!”. -
.: Morra, Amor [fragmento]
eu me reclinei na grama entre árvores caídas e o sol que aquece a palma da minha mão me deu a impressão de ter uma faca com a qual ia me esvair em sangue com um corte ágil na jugular. Ao fundo, no cenário de uma casa entre decadente e familiar, podia sentir as vozes do meu filho e do meu marido. Os dois nus.
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.: A segunda cobra
Uma noite, no começo de abril, num dia especialmente irritante do décimo terceiro mês vivendo la vida lockdown, no bosque do norte do estado de Nova York, cheguei em casa com minhas filhas, de três e seis anos, e encontrei meu marido, Eric, com uma expressão estranha.
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.: La Grieta [fragmento]
Chega um táxi em que subo impaciente, tem cheiro de pinho e no rádio toca um reguetón como música de fundo. Marín com Salvador, mas primeiro quero parar para comprar cigarros, Blanca – ainda chateada comigo – grita ao motorista, enquanto lhe pede para abaixar a música e abre a janela
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.: A maternidade é sempre política para mães negras
Quando eu tinha uns sete ou oito anos, minha mãe costumava colocar para tocar, todo dia antes de sairmos para a escola e para o trabalho, a música Greatest Love of All (O maior amor de todos), da Whitney Houston, e cantávamos junto do início ao fim. De pé na sala, logo antes de vestirmos nossos casacos, entoávamos aquela letra que fala de autossuficiência e de perseverança, e encontrávamos, por meio da música, uma espécie de armadura.
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.: pequeno ensaio sobre nada
Caminhava na rebentação litorânea da vazante de uma lua crescente. Vivo perto de corais, e na areia plana, quando a maré desce, surgem os mais bonitos traços feitos pela água, por pequeníssimos bichos marinhos, algas agarradas em matéria calcária, bolhas de ar saltadas da espuma, correndo com o vento que invade a paisagem há dias. Tudo o que existe marca o mundo, tudo desenha, escreve, se inscreve, tudo move a terra, a água, tudo move outros corpos, abre espaço, faz um buraco, deixa um buraco, tudo tem um nome.