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.: Do desfiar ao tecer – Manto materno
Minha avó Salu tinha um ofício cuidadoso. Quando menina, trabalhava no roçado: roçava, semeava, colhia, quebrava coco… Quando jovem, casou-se, teve cinco filhos e, com a reviravolta do tempo, ficou viúva e voltou à roça para sustentar os filhos, à mesma labuta na agricultura e pecuária
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.: Eu carrego tudo o que sou pelo meu ventre
Toda a dor do passado
as sementes germinadas
no útero de minhas avós
nutridas com seu sangue
suas lágrimas e sua força
eu carrego
os frutos de sua carne
galhos
trilhas tortuosas
tronco firme também -
.: Ela cresce
Foi ontem que aquele cheiro
Invadia as minhas narinas
E ela saía das entranhas de mim…
Coroou-me minha menina.Não tem muito tempo que ela, semente,
Se encaixava perfeitamente
Entre meu seio farto e o umbigo,
E mal pesava na cunha de minhas mãos,
Seu novo abrigo. -
.: Um dia, você há de se lembrar
Um dia, quando você sentar na beira da calçada para amarrar o cadarço dos sapatos, há de lembrar-se de mim, ajoelhada, diante de você. Calço seus pés, miro-lhe o riso, lavo o seu corpinho preservando beneditinamente cada instante. Há de achar que eu nunca tive um medo.
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.: Com-a-maré
a maré subiu, sobe maré
a maré desceu, desce maré
A despeito de constar como tópica relevante na produção literária de mulheres negras desde o século XIX, haja vista a obra da precursora Maria Firmina dos Reis, a maternidade negra segue sub-representada na discursividade nacional -
.: Afetos ferozes [fragmento]
Dia glorioso, hoje: Nova York em plena intensidade sob o sol claro de outono, os edifícios delineados com nitidez contra o céu limpo, ruas apinhadas com pirâmides de frutas e legumes, flores em vasos de papel machê recortando círculos na calçada, bancas de jornal vibrantes em branco e preto.
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.: O acontecimento [fragmento]
Sábado, dia 18, peguei bem cedo o trem para Paris. Fazia muito frio, tudo estava branco. No vagão, atrás de mim, duas garotas falavam sem parar e riam de tempos em tempos. Escutando-as, eu me sentia sem idade.
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.: A infância prometida
Descobri que estava grávida na manhã seguinte a uma noite de amor. Tive um sonho candente: estava em Belo Horizonte, cidade em que nasci, e buscava a minha mãe para almoçarmos. Ela entrava no carro e me dizia: “O templo feminino acaba de ser descoberto. Você já foi ver?” Respondia-lhe que não, e juntas seguíamos para o litoral, perto do mar. “Está ali.” — disse-me ela, apontando para a praia. Atravessamos a avenida beira-mar e vi: o templo era feito de areia, com amplas salas abobadadas, ligadas por extensos e estreitos túneis.