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.: Sobre morrer
Quantas vezes você já morreu? Minha vó costumava dizer que a gente que é pobre já nasce morrendo. Se for mulher então, aí é que fica pior: nasce culpada e morrendo. Eu cresci com isso martelando na minha cabeça. O que seria pior? A culpa ou a morte? Até hoje, não sei. Na primeira vez que senti a morte, ela veio fantasiada de amor e proteção, talvez por isso tenha conseguido apagar o brilho da alma e cortar a carne.
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.: Poema para sonhar amanhã
A casa dorme, meu filho dorme. Sonha o meu filho? Alinho as palavras tortas na esperança de ver nascer um milagre para mulheres-meninas, mulheres-anciãs, mulheres-passarinhas. Cá dentro, inauguro um tempo infindo, de memória, benção para curar os olhos da guerra,
Mamãe, Kiev também é aqui? -
.: Definir-se mãe em tempos de pandemia
No dia 04 de julho de 2017, dois traços vermelhos me enunciavam Mãe. A palavra mãe, ainda em processo, ecoou, rasgou e feriu-me como uma navalha, enquanto tentava não acreditar no que via. Palavras pularam da minha cabeça, me olhando e insistindo em me penalizar, em me asfixiar: camisinha, pílula do dia seguinte, anticoncepcional – tanta coisa e, mesmo assim, fui abraçada pela desinformação?
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.: Filho
Tendo filho
Filho não se deixa de ser
Só não se é mais o centro
O centro
O umbigo
Passa de lado
Vai para o filho -
.: Relicário
Antes de tudo, deixe-me apresentar-me. Sou a duquesa Labalábá. O nome herdei da bisa e faz referência e presta reverência à Ọya que rege e protege a minha família desde tempos muito antigos, ainda no continente africano. Dela herdamos, também, a coragem, a ousadia, a independência e o trato com a morte. Somos mulheres-búfalo.
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.: Da dor e do amor
Nascemos. Em abril de 2013, minha filha e eu nascemos, ela para o mundo e eu como mãe. Nunca almejei ser mãe, não sonhei ter filhos. Gostava mais das brincadeiras de rua e de professora do que de bonecas. Amava mesmo os livros!
Minha filha foi um acontecimento inesperado, resultado de um amor não correspondido -
.: Canções puerperais
eu queria escrever uns versos pra matar o tempo, a saudade, a vontade. pra saciar a sede, o desespero, a febre, o silêncio. eu queria escrever umas palavras ainda que soltas, qualquer coisa que me lembrasse que eu ainda tô aqui, aqui, aqui dentro, como eu tô fora, fervendo.
mas meu filho acordou dez vezes noite passada. -
.: A ira da filha de cam continua
A ira da filha de cam
parece perda de palavra
que
mucama
num é quem ama
é qual a
mulata
bicho que se quer
domesticado -
.: [O relógio…]
O relógio
seguindo passos de
antes –
sufocou feridas.
Pedaços da renda da
toalha de mesa embranquecendo
o assunto do almoço
o vai e vem de panelas fumegantes
pra embalar uma fome ancestral