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.: Melhor não contar [fragmento]
Quando falo sobre ela para meus filhos, estou lhes mostrando como ela era ou como eu sou?
Quanto eu me pareço com ela?
Quanto eu sou ela?
Quanto ela sou eu?
Quanto resta de uma pessoa morta em nós?
Quanto de nós uma pessoa morta leva?
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.: Sexo e desorganização [fragmento]
Esta noite, minha filha e eu brincamos de sugar pontos do rosto uma da outra, meu queixo, a boquinha dela, minha bochecha, o pescoço dela. O prazer foi incrível, não só pelo prazer de sugar, o prazer dos lábios e da língua, mas também o joguinho, a troca furtiva de olhares, os ritmos se desdobrando e se desenvolvendo, a brincadeira de escolher onde, quando, com que força, e sempre a questão de quando parar.
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.: Sob a pele fina
Foi num 7 de novembro fresco e chuvoso que descobri que estava grávida. A menstruação estava atrasada uns seis dias, algo que não era incomum. Estranhei, no entanto, o gosto ruim que se instalara no fundo da minha garganta nos últimos dias. Não era um enjoo, não sentia ânsia de vômito nem náuseas. Era um sabor amargo que parecia brotar da base da língua e se alastrar pela boca. Salivava e sentia vontade de comer. Colocar substâncias de sabores variados na boca aliviava momentaneamente a sensação do gosto acre. Comia morangos – que nunca gostei muito –, enchia a boca de mexericas e mastigava o bagaço até que mais nenhum suco pudesse ser espremido e depois cuspia tudo na pia da cozinha, aliviada.
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.: Neca: Romance em bajubá [fragmento]
Como era besta, a gata se desdobrando pra agradar macho e eles se lixando — quanto mais eu fazia, mais me esnobavam. Eu aproveitava que ia lavar roupa e cuidava da de um ou outro. Porque, em casa, eu já lavava e não só a minha. Eu queria ser menina, então lavava, cuidava da casa, fazia comida, tudo melhor que as filhas meninas das vizinhas lá. Mamãe muito a contragosto deixava, vida puxada, aquela canseira sem fim, não era o que ela sonhou pro Simon.
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.: Querido babaca [fragmento]
Alguns amores parecem droga pesada. Você não abandona, mesmo quando passa a ser destrutivo. Você tem certeza de que, sendo leal, corajosa e obstinada, as coisas voltarão a ser como no início. Quando eram extraordinárias. Seu lado racional sabe que tudo acabou, mas suas entranhas é que comandam, elas dizem que você deve persistir nesse amor. No meu caso, eram sempre caras como eu. Que queriam preencher um vazio, um abismo, que acreditavam naquilo de corpo e alma.
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.: Mata Doce [fragmento]
No dia da morte de Tuninha da Vazante, Filinha foi recolher e limpar o corpo da mãe. Nessa hora Mariinha se levantou. Lai havia forrado a cama com plástico, e Maria Teresa descansou a mãe ali como se repousasse um passarinho. Até aquele momento o banho de sua mãe Tuninha havia sido serviço realizado apenas por sua mãe Mariinha e depois por Lai. Por muito tempo lhe pareceu que elas protegiam algum mistério.
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.: Eliete: a vida normal [fragmento]
Ninguém podia acusar-me de eu não ter sido uma boa mãe no que dizia respeito aos aspetos práticos, tal como ninguém podia acusar-me de eu não me ter esforçado para me manter próxima das miúdas quando elas deixaram de precisar dos meus cuidados. Só que então a proximidade passou a depender também da disponibilidade e da vontade delas e, por mais esforços que eu fizesse, essa disponibilidade e essa vontade tardavam em surgir, até que percebi que nunca surgiriam. A culpa disso era minha, tinha de ser minha, já levava muitos anos de mundo quando as fizera nascer, competia-me saber apresentar-lhes como feliz a relação que gostaria de ter com elas. Não o soubera fazer.
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.: Uma duas [fragmento]
Não é assim que eu sonhava escrever. Os livros sempre foram a janela por onde eu escapava desta mãe que agora, enquanto escrevo com o sangue pingando, me espreita atrás da porta. Desde criança, quando abro um livro não estou mais aqui. Não é uma metáfora para mim. Talvez o chefe com cauda de lagarto tenha razão. Eu não sei fazer metáforas porque não compreendo metáforas. Para mim tudo é literal. Como meus braços bordados pelas cicatrizes de todas as tentativas de me separar do corpo de minha mãe.
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.: Contra os filhos: uma diatribe [fragmento]
Sou contra a secreta força dos filhos-tiranos nestes tempos que correm, velozes e desaforados como eles – sobre minha cabeça e pelo corredor. Aos berros! Silêncio, imploro, dissimulando minha irritação: não há quem trabalhe no meio de uma bagunça dessas. E não é só contra esses filhos prepotentes que escrevo, mas também contra seus progenitores. Contra os confortáveis cúmplices do patriarcado que não assumiram sua justa metade na histórica gesta da procriação. Contra a nova espécie de pais dispostos a colaborar dentro e fora de casa, mas que parecem incapazes de pronunciar um educativo “acabou!”, um certeiro’ “chega!” para seus filhos rebeldes; sem se abalar, permitem que eles ignorem a paz de seus desesperados vizinhos.