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.: Cara paz [fragmento]
Na parede ao lado da minha cama, eu tinha uma foto de Gloria com nós duas. Era uma fotografia tirada por Seba, num domingo longínquo em que havíamos ido ao lago Nemi todos juntos. Ventava naquele dia, brincamos de correr uma atrás da outra perto da margem: no retrato, nós três, mãe e filhas, aparecemos despenteadas, esbaforidas, alegres. Mamãe no meio, nós duas abraçadas a ela. Eu olhava e olhava de novo aquela foto. De noite, quando ninguém me via, virada para a parede eu a encarava travando conversas comigo mesma – diálogos mudos que eram meu grande segredo.
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.: A teta racional [fragmento]
Minha primeira filha tinha acabado de completar um mês. Eu estava na estação de metrô, voltando para casa. De repente, olhei em volta e percebi que todas as pessoas na estação eram filhos de alguém. Eles não eram mais homens nem mulheres. Eram filhos, apenas. O filho de uniforme cuidando das catracas. A filha de tranças procurando moedas na mochila. O filho de meia-idade carregando uma pasta de couro. O filho de cabelos despenteados falando sozinho. A filha de jaleco dormindo com o queixo enfiado no peito. Para alguém, em algum lugar, aquela era a pessoa mais importante do mundo.
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.: Peitos e ovos [fragmento]
Tomamos cerveja e comemos os vários petiscos servidos na mesa. Tudo estava uma delícia, mas Yusa elogiou muito minha omelete em estilo de Kansai. Ela me entregou uma folha grande do bloco de post-it que pegara de algum lugar e me pediu a receita. Escrevi: quatro ovos, meia colher de sopa de shirodashi, uma pitada de sal, três gotas de shoyu e cebolinha (a gosto), e lhe entreguei. Yusa colou a folha na porta da geladeira e a observou, satisfeita, por um tempo. E, virando-se em minha direção, disse, sorrindo:
— Kura.
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.: Eva [fragmento]
Mês de maio era quando a gente coroava Nossa Senhora. Duas filas paralelas subiam as ruas do Centro até chegarmos ao largo da Matriz. As meninas vestidas de virgens ou anjos. Uma menina rica tinha preferência do padre para segurar o estandarte, função de honra. Meu dia de coroar a Virgem Santíssima tinha chegado. A mãe e a vó, muito orgulhosas, se ocupavam dos preparativos como se fosse ceia de Natal. Palminhas da mão juntinhas, filha. Segure entre elas o terço e a rosa branca da Virgem. Não deixe cair, pelo amor do nosso Jesus Cristo. Deixar cair um terço é mau presságio, coisa ruim mesmo, dá até morte na família.
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.: A filha primitiva [fragmento]
Minha mãe lavava roupa em casa de rico e eu ia junto pra não ficar sozinha. Ela mentia pra patroa, dizia que era pra eu aprender o serviço. Quando a mulher saía, ela pegava um livro na estante e me entregava.
Esquece tudo o que eu falei e lê. Não quero sua mão engelhando feito a minha de tanto lavar roupa pros outros. Quero tua mão cheia de calo de tanto escrever e tua vista cansada de ler. Toma, pega logo esse livro. Anda, tira o lápis e o caderno da bolsa e escreve teu nome completo dez vezes.
Não, dez é pouco, cinquenta. Depois escreve o meu também.
Mas pra quê, mãe?
Pra ficar com caligrafia boa. Professora tem que escrever bonito pro aluno entender.
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.: Tipos de perturbação: ficções [fragmento]
Viajando com Mamãe
1.
Na frente do ônibus dizia “Buffalo”, afinal, e não “Cleveland”. A mochila era do Sierra Club, não da Audubon Society.
Tinham me dito que o ônibus com a placa “Cleveland” era o certo, apesar de que eu não estava indo para Cleveland.
2.
A mochila que eu trouxe era bem resistente, até mais do que o necessário.
Tinha ensaiado várias respostas caso me perguntassem o que havia na mochila. Ia dizer, “É areia para vasos de plantas” ou “É para uma almofada de aromaterapia”. Também teria dito a verdade. Mas eles não abriram a bagagem dessa vez.
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.: As maravilhas [fragmento]
Nando sempre lhe pede, me dê pelo menos isso, Alicia. “Isso” já não é o casamento, ao que Alicia dobrou-se porque lhe garantia aquele apartamento triste num bairro triste, nem os filhos; Nando aceitou – ou quase – que nunca nascerão. “Isso” é o que seu marido às vezes lhe impõe disfarçado de fins de semana com o grupo de ciclistas, de belas paisagens em companhia que podia ser melhor, ou de mais alguns dias na praia com a mãe dele, com que Alicia exerce a saudável prática do silêncio; “isso” também vem disfarçado de noite de sábado na casa de um casal de amigos, ou de um jantar num restaurante do bairro. Alicia se meteu nisto – “isto”, não “isso”: Nando, morar com Nando, casar-se e adaptar sua vida à dele –, portanto, sua recusa de ter filhos a obriga a uma concessão cotidiana
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.: Santíssima
Elas não têm com quem contar a não ser com as minhas mãos, essas palmas lisas de esfregar roupa, arear panela, carregar tinas, baldes, bacias, capinar terreiro, depenar galinha. Tenho gosto por lavar roupa, por revolver a terra e por tudo o que as minhas mãos apanham, vai ver por isso Deus me deu o conhecimento, a clareza para fazer pelas comadres o que ninguém faz. Ainda que me falte instrução e que a inteligência para os livros me seja curta, quase nenhuma, há coisas que sei. Há coisas que sei muito bem. O jeito com que se achega ao mato para catar erva-de-são-joão, catinga-de-mulata, folha de algodoeiro, isso eu sei. Como sei escutar os suspiros das comadres, as palavras de cansaço, os gritos delas nos descampados.
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.: Sobre minha filha [fragmento]
Minha filha volta pra casa quase à meia-noite. Tão cansada que seu hálito chega a ser ácido. O panfleto está sobre a mesa, com a parte dobrada rasgada até a metade. O barulho da chuva é forte. O ar dentro de casa está pesado e úmido por causa das janelas fechadas.
Então você acha bonito ficar gritando no meio da rua, expondo a cara, o nome e tudo?, tento manter a voz baixa. Acha bonito andar com esse bando de gente igual a você, pra fazer coisas que nem crianças fariam?
Você foi lá? Quando?
Minha filha parece assustada.