[ arquivo ]
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.: Rilke Shake [fragmento]
na rua, minha mão
deslizava por sua cintura, ela
ria, não dizia nada
quando dizia era
não se acostume
comigologo você
vai
embora. -
.: No lugar de um prefácio
“Nos anos terríveis da Iejovshtchina, passei dezessete meses fazendo fila diante das prisões de Leningrado. Um dia alguém me “reconheceu”. Aí, uma mulher de lábios lívidos que, naturalmente, jamais ouvira falar em meu nome, saiu daquele torpor em que sempre ficávamos e, falando pertinho do meu ouvido (ali todas nós só falávamos sussurrando), me perguntou:
– E isso, a senhora pode descrever?
E eu respondi:
– Posso.
Aí, uma coisa parecida com um sorriso, surgiu naquilo que, um dia, tinha sido o seu rosto.”Leningrado 1o/4/1957
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.: Sobre amor e genética [fragmento]
Comecei a pensar na maternidade e na solidão da minha mãe numa segunda à noite. Ela tem mãe, irmã e sobrinhos, e ainda assim há momentos em que ela não escapa ao abandono que vem junto com o papel de mãe solo – um deles se apresentou logo no início desta semana, às 22h50, envolvendo um carro com documento vencido e uma blitz a dez minutos de casa.
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.: Contínuo [fragmento]
Então me tornei mãe. Comecei a habitar o tempo de outro jeito. Tinha algo a ver com a mortalidade. Continuei escrevendo o diário, mas minha preocupação em relação às memórias perdidas começou a arrefecer.
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Amamentar um bebê cria tanto tempo perdido, vazio. Da mamada noturna do bebê eu não me lembro de nada. Da mamada diurna não me lembro de quase nada.
Era um nada diferente do nada não registrado dos anos anteriores; esse nada estava ausente de experiências subjetivas. Eu estava ou dormindo ou quase dormindo todo o tempo.
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.: Um em cada quatro
Aqui na Islândia eu crio os filhos dos outros. Os pais destas crianças não sabem que ajoelhada amparando-os há uma escritora, tradutora, muito menos uma pesquisadora que defendeu um doutorado sobre poesia italiana. Na Islândia, para sobreviver, vendo meu corpo de mãe. Vendo-o por hora. Vendo meu colo, meus braços, meu acalanto, minha paciência e inventividade. Minha capacidade de brincar. Vendo 60% da minha jornada cuidando dos filhos dos outros para poder pagar as contas e criar meu filho.
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.: Vidas lado a lado
Minha mãe sempre sabe tudo. O que vamos comer, a hora de brincar, a hora de dormir, por que eu tenho cabelo preto, menos o porquê de meu pai ter ido embora.
Já perguntei mas ela não me conta. Ela diz que ele decidiu e pronto. Pronto como? O almoço sempre está pronto às 12:00 horas, será que ela quer dizer algo como isso? Deu 18:00 horas e ele quis ir embora?
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.: Vietnã
Mulher, como você se chama? – Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? – Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? – Não sei.
Desde quando está aqui escondida? – Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? – Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? – Não sei.
De que lado você está? – Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. – Não sei.
Tua aldeia ainda existe? – Não sei.
Esses são teus filhos? – São. -
.: A história de Roma [fragmento]
Decido ir embora. O que presenciei é íntimo, não me diz respeito e, ainda assim, põe-me em causa. Agarro nas minhas coisas. Fico em pé, colada à porta, à espera. Quando Laura volta, trá-lo ao colo, já só mimoso e flente, aninhado no pescoço dela, a mão pequenina enrolada numa mecha do cabelo da mãe.
— Já vais?! — pergunta, aturdida, os olhos muito abertos.
Tenho o casaco vestido, calço-me e seguro o trinco da porta. Desculpo-me, saio. A cada lanço de escada me sinto pior. Que atitude péssima. Mas não consigo voltar atrás nem lhe conseguirei dizer nada durante muito tempo.
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.: MAMA: um relato de maternidade homoafetiva [fragmento]
Amamentar tornou-se um hábito. Faz alguns dias que o Bernardo e a Iolanda nasceram, e eu tenho amamentado dezenas de vezes por dia. Colocar o peito para fora e oferecer a meus filhos é um gesto já incorporado à rotina. Mas a simbologia desse ato tem se transformado diariamente.