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  • .: A filha única [fragmento]

    A filha única [fragmento]

    Guadalupe Nettel
    N. 143 | 2025

    Todos os dias, a geneticista ia ao berçário para colher amostras de sangue da menina. Além dela e do neurologista, vieram representantes da Secretaria de Saúde, para ver se o caso de Inés poderia ser incluído nos causados pelo zika. A dra. Mireles recomendou que eles acessassem todos os estudos. Isso os ajudaria a ter mais clareza sobre a condição da filha. Na quinta-feira, todos os especialistas se reuniram com eles numa sala do hospital ao lado do berçário. Havia café quente, cartões e lápis para a reunião. Aurelio e Alina sentaram-se numa das pontas da mesa. Inés também estava lá, nos braços da mãe, esperando como todos por seu diagnóstico.

  • .: Máquina de leite [fragmento]

    Máquina de leite [fragmento]

    Szilvia Molnar
    N. 142 | 2025

    John e eu estamos jantando e ele está dando mamadeira para Button, pois assim posso terminar de comer. Nós tentamos transar ontem à noite. Ficamos um em cima do outro na cama, como caixas de papelão empilhadas, e duramos talvez uns cinco minutos. A única coisa que senti foram os solavancos lentos e ritmados de nosso maquinário. Senti o cheiro da pele dele, com um leve aroma de sândalo. O resto de mim estava vazio. Não há muito o que dizer e neste caso é difícil nos situar em relação ao tempo.

  • .: Leite: Notas sobre a cruzada da amamentação

    Leite: Notas sobre a cruzada da amamentação

    Margarita Robayo
    N. 141 | 2025

    “NÃO DESANIME! A NATUREZA NÃO É MARAVILHOSA?”

    A folha impressa com esta mensagem da internet sobressaía do caderno de uma jovem sentada mais à frente. De onde eu estava, só dava para ler o título. Duas frases interligadas pelo capricho de alguém com excesso de entusiasmo. Ou de violência. Em geral não gosto de ponto de exclamação — usá-lo num título, então, é como cuspir na cara de alguém. E a natureza? A natureza é tão maravilhosa quanto um tornado, uma chuva ácida, uma praga de lagartas.

  • .: A analfabeta [fragmento]

    A analfabeta [fragmento]

    Ágota Kristóf
    N. 140 | 2025

    Fico sabendo pelos jornais e pela televisão que uma criança turca de 10 anos morreu de frio e de exaustão enquanto tentava atravessar clandestinamente a fronteira suíça junto a seus pais. Os “coiotes” os deixaram perto da fronteira. Eles só tinham que andar sempre em frente em linha reta até chegarem ao primeiro vilarejo suíço. Caminharam por longas horas pelas montanhas e florestas. Fazia frio. Lá pelo fim, o pai colocou a criança no ombro. Mas já era tarde demais. Quando chegaram ao vilarejo, a criança estava morta de cansaço, de frio e de exaustão.

  • .: Frio o bastante para nevar [fragmento]

    Eu me dei conta de que, com a idade que eu tinha agora, minha mãe já fizera uma nova vida para si mesma em um novo país. Ela já havia se tornado mãe de um novo bebê e provavelmente era capaz de contar em uma só mão o número de vezes que retornaria a Hong Kong para ver sua família. Tentei, em vão, imaginar seus primeiros meses lá. Ela sentiu saudade de casa? Ficou impressionada com as ruas, as casas de tijolos e de madeira, tão diferentes do lugar em que crescera? Ficou extenuada não pelas grandes diferenças, mas, como muitas vezes acontece, por incontáveis diferenças menores?

  • .: Uma morte suave [fragmento]

    Uma morte suave [fragmento]

    Simone de Beauvoir
    N.138 | 2025

    A Mamã fez a sua entrada na vida social espartilhada pelos princípios mais rígidos: conveniências de província e moral conventual.

    Com vinte anos, sofre um novo desaire afectivo: o primo por quem estava apaixonada escolheu casar com outra prima, a minha tia Germaine. Desses desastres sentimentais, ela guardou durante toda a vida um fundo de susceptibilidade e de ressentimento.

    Ao lado do Papá, ela floresceu. Amava-o, admirava-o e, durante dez anos, ele realizou-a sem dúvida em termos físicos. Ele adorava mulheres, tinha tido inúmeras aventuras, e pensava – como Marcel Prevost, que lia deliciado –, que não se deve tratar a esposa com menos desvelos do que uma amante.

  • .: Palíndromo, Aborto, Desmame

    Palíndromo, Aborto, Desmame

    Fernanda Goulart
    N.137 | 2025

    mãe, em cor de rosa.
    não há outra cor para as mães
    que de repente se tornam filhas nossas.
    quem devemos pôr no colo e cantar,
    baixinho, em tom de segredo:
    não há amor
    pra dizer do seu e do meu.

     

    te dou banho e te seco
    sem me dar conta de que te vejo
    mais nua do que está, nua como és,
    fragilmente.
    mesmo sem que me admitas, admite-me
    é nosso berço, esse.

  • .: Ele cria pássaros, eu, minhocas

    Ele cria pássaros, eu, minhocas

    Fernanda Goulart
    N.136 | 2025

    Ele cria pássaros, eu, minhocas.

    Os dele, pequenos ainda, sorvem na mamadeira uma substância pastosa especial para pássaros. As minhas, de mutantes medidas, se embaraçam na terra e desdão seus nós em busca de folhas murchas, cascas de legumes e frutas podres.

    Seus pássaros têm topete ousado e cores pastéis, gritam quando sentem fome, se pronunciam cantando, debruçam-se nos ombros humanos como se garantissem devolver-lhes a beleza com que são observados.

    Minhas minhocas são pálidas, lânguidas e gosmentas. Se assombram mais do que a qualquer outro, e abrem passagens ardentes e acanhadas, na justeza de quem recusa a pujança apenas para caber atravessar.

  • .: A amiga genial: infância, adolescência [fragmento]

    A escola, desde o primeiro dia, logo me pareceu um lugar bem mais alegre que minha casa. Era o local do bairro em que eu me sentia mais segura, e ia para lá muito emocionada. Prestava atenção nas aulas, executava com o máximo zelo tudo o que me mandavam fazer, aprendia. Mas acima de tudo gostava de agradar à professora, gostava de agradar a todos. Em casa eu era a preferida de meu pai, e meus irmãos também gostavam de mim. O problema era minha mãe, com ela as coisas nunca iam por um bom caminho. Já na época, quando eu tinha pouco mais de seis anos, tinha a impressão de que ela fazia tudo para me mostrar que eu era supérflua em sua vida. Não tinha simpatia por mim, nem eu por ela.