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.: Departamento de especulação [fragmento]
Os olhos da bebê eram escuros, quase pretos, e, quando eu a amamentava de madrugada, ela olhava para mim de um jeito surpreso, náufrago, como se meu corpo fosse a ilha para onde ela tivesse sido arrastada.
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.: O custo de vida [fragmento]
Minha mãe me ensinou a nadar e a remar. Ela nasceu na África do Sul, cresceu na “cidade dos ventos” de Porto Elizabeth e sentiu saudades do mar todos os dias das quatro décadas em que viveu na parte norte de Londres.
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.: O começo do outro
eu fui aquilo que jamais ousei. era algum lugar impreciso e o corpo sabia.
o começo do outro, o vazio daquela barriga impossível. eu já não fui. sentada numa cadeira vermelha da cor do sangue que ainda despenca entre as pernas, eu não sabia
que o sangue ainda permaneceria. eu fui o sangue. -
.: Mármores
Um pai, uma avó, um avô, que não existem mais.
Você, criança, de aniversário. Dois anos, pouquinho de tempo de vida, mais curto que sua dor mais recente. Na foto, sorrisos. -
.: O que não estou escrevendo
Não estou escrevendo sobre as coisas incríveis que observo no desenvolvimento da linguagem e da comunicação com o mundo do Camilo. Que antes todas as peças de roupas eram blusas, agora só as meias são blusas e o restante é roupa. Se falo: vamos colocar uma meia? Ele abre a gaveta, pega as meias, olha para mim e diz: blusa.
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.: Beethoven
Domingo, pão de queijo, suco de laranja, 28 graus ainda de manhã, programa cultural: assistir à Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Beethoven.
Sair com um bebê sempre significa caos e organização. Mesmo se organizar direitinho, vai ser caótico em alguma medida. Sempre.
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.: Carta sobre vó
trouxe um pouquinho de casa comigo. devorei tudo em dois dias. fui afoita, botando gomo após gomo de fruta após fruta na boca, acho que para ver se molhava um pouco por dentro. eu costumo ser muito cheia de água, mas percebo que estou secando.
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.: Eu não estou escrevendo
Eu não estou escrevendo um diário sobre o exílio espontâneo que realizei pela América do Sul, começando pela Amazônia. Este diário poderia ser uma etnobiografia, contando sobre meu encontro com Dona Mariana, uma pajé Macuxi, e meu batismo como Tukui.