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.: O jogo dos dias
É preciso começar pela margem. Primeiro, separar as peças, isolando todas que tiverem uma lateral perfeitamente reta, são as que formam a moldura, estabelecendo o limite e o início das conexões restantes. Atenção para as peças com duas laterais retas, essas são as
de canto, é importante ter atenção aos cantos. -
.: Eu e João
De onde parto? De mim. Dividida em duas partes, no parto. Eu e João, tirado de mim por minha mão. Atrás de mim, minha mãe.
Talvez sejam essas as minhas primeiras referências sobre maternidade.
Maternidade um tanto fora do padrão. Deficiente? Nunca gostei dessa palavra, mas carrego em mim uma lesão medular.
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.: Fresta
Fecho os olhos. Inspiro fundo, retenho o grito – tenho exercitado firme para não pedir as coisas aos berros.
Eu e ele. Um ano e um mês. No início, eu me sentia num desses filmes de cataclismos, em que os personagens têm que se esconder, juntar provisões, acuados em bunkers e sem saber muito bem como anda o resto do mundo lá fora. Nosso isolamento é Nutella, apesar de todo o perrengue. Nesse tempo, perdi a conta de quantas rotinas ocasionais negociamos, tentando manter alguma espécie de sanidade dentro dessa nova normalidade.
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.: inventário isolado
dia 01
dizem que isso vai durar pelo
menos três meses.dia 02
falei com gorete e ela disse que queria continuar vindo trabalhar.
sobreviveremos.
ela e eu. -
.: Carta às 4
Queria falar-vos do declínio do corpo, da garganta ou do pó da pandemia, a cor ocre da argila. Espirros de memórias ventiladas. Falar-vos de quando atravessamos os vidros das janelas como um passatempo. O tempo passou.
Lembram-se de quando escutamos os sussurros? As ambulâncias, as luzes desmaiadas nas ruas; dentro de casa, lugares inventados como pontos de fuga e gritos.
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.: No quintal da minha infância
Ser mãe: o extraordinário é o mais comum. E não seria exagero dizer que o comum é o mais bonito. É o que sinto. Ainda assim, eu tenho medo da morte. Sempre tive e agora tenho mais. Um medo enorme. Por isso, eu cuido da vida.
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.: Contínua
Quando estávamos no início da pandemia da Covid-19 e lavávamos pacotes de arroz ou economizávamos álcool em gel pensando nos hospitais, enquanto o governo brasileiro não se responsabilizava por adquirir e desenvolver vacinas e fortalecer o Sistema Único de Saúde, quando todos nós esvaziávamos as ruas e ficávamos confinados em casa, acuados com as nossas loucuras – as crianças tornaram-se quase invisíveis para o mundo público, entregues aos cuidados domésticos, e o seu burburinho incessante destinava-se às suas mães.
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.: A escrava
Em um salão onde se achavam reunidas muitas pessoas distintas, e bem colocadas na sociedade, e depois de versar a conversação sobre diversos assuntos mais ou menos interessantes, recaiu sobre o elemento servil.
O assunto era por sem dúvida de alta importância. A conversação era geral; as opiniões, porém, divergiam. Começou a discussão.
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.: Argonautas [fragmento]
2011, o auge das nossas mudanças corporais. Eu grávida de quatro meses; você usando T há seis. Nós, verdadeiros poços de hormônio, resolvemos passar uma semana num Sheraton na praia de Fort Lauderdale, bem na época das monções, para que você retirasse os seios com um bom cirurgião e se recuperasse.