[ arquivo ]
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.: cotidiano
não tem ninguém esperando no banquinho de cimento na frente do portão
cotidiana é a saudade de um amor que me levante
mesmo que a dor seja em outro lugar -
.: Tempo
Às vezes
eu queria abraçar o tempo
para que o tempo se acalme.Eu
acostumada a chegar aos lugares
sempre cedo demais ou tarde demais.
Nunca a tempo.Eu que caminho tarde adentro
como se estivesse prestes a perder
o último metrô. -
.: anti-memória
saudade do vão da escada onde nunca me sentei a crochetar
pintar fitar o nada; contar do teto cada ponto mancha vinco.
saudade. da tinta opaca nunca pegada à parede da sala.
saudade de cada recado jamais escrito na lousa-casa-não-ter-
sido. das festas tantas varando a noite e a madrugada anti-
silêncio anti-lei ou nada. saudades da comida não preparada
louça-peças-pedaços-nós nunca comprados. -
.: Garota, mulher, outras [fragmento]
elas entraram em cena há sete e três anos, respectivamente, e são mulheres independentes que têm vidas cheias (e filhos) fora do relacionamento com ela
não são grudentas nem carentes nem ciumentas nem possessivas, e de fato gostam uma da outra, então, sim, às vezes elas se permitem um pequeno ménage à trois
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.: Ancestralidade feminina
O amor é como um bordado:
meu nome gravado nas toalhas com as letras cuidadosamente desenhadas,
o crochê das tias, dedos que dançam para escrever o afeto,
as roupas costuradas pela avó com os restos dos sacos,
a bainha da calça feita pela mãe,
também eu – interessada nas arpilleras hermanas – compro novelos no mercado central.Costurar, remendar, cravar no tecido (da pele) a história.
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.: Re-escrituras para Cintura Fina
É sabido que a imprensa ainda utiliza a lógica transfóbica para se referir a nós, pessoas trans. Nos matando em suas manchetes mesmo quando o corpo já não respira e o sangue já não circula. Mas me chama a atenção a associação de Cintura Fina a uma malandra, já que naquela lista, além de “refinada malandra”, constavam ainda “malandra incorrigível” – que eu acho lindo – e “malandra”. Somente “malandra”.
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.: Rilke Shake [fragmento]
na rua, minha mão
deslizava por sua cintura, ela
ria, não dizia nada
quando dizia era
não se acostume
comigologo você
vai
embora. -
.: No lugar de um prefácio
“Nos anos terríveis da Iejovshtchina, passei dezessete meses fazendo fila diante das prisões de Leningrado. Um dia alguém me “reconheceu”. Aí, uma mulher de lábios lívidos que, naturalmente, jamais ouvira falar em meu nome, saiu daquele torpor em que sempre ficávamos e, falando pertinho do meu ouvido (ali todas nós só falávamos sussurrando), me perguntou:
– E isso, a senhora pode descrever?
E eu respondi:
– Posso.
Aí, uma coisa parecida com um sorriso, surgiu naquilo que, um dia, tinha sido o seu rosto.”Leningrado 1o/4/1957
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.: Sobre amor e genética [fragmento]
Comecei a pensar na maternidade e na solidão da minha mãe numa segunda à noite. Ela tem mãe, irmã e sobrinhos, e ainda assim há momentos em que ela não escapa ao abandono que vem junto com o papel de mãe solo – um deles se apresentou logo no início desta semana, às 22h50, envolvendo um carro com documento vencido e uma blitz a dez minutos de casa.