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.: Contínuo [fragmento]
Então me tornei mãe. Comecei a habitar o tempo de outro jeito. Tinha algo a ver com a mortalidade. Continuei escrevendo o diário, mas minha preocupação em relação às memórias perdidas começou a arrefecer.
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Amamentar um bebê cria tanto tempo perdido, vazio. Da mamada noturna do bebê eu não me lembro de nada. Da mamada diurna não me lembro de quase nada.
Era um nada diferente do nada não registrado dos anos anteriores; esse nada estava ausente de experiências subjetivas. Eu estava ou dormindo ou quase dormindo todo o tempo.
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.: Um em cada quatro
Aqui na Islândia eu crio os filhos dos outros. Os pais destas crianças não sabem que ajoelhada amparando-os há uma escritora, tradutora, muito menos uma pesquisadora que defendeu um doutorado sobre poesia italiana. Na Islândia, para sobreviver, vendo meu corpo de mãe. Vendo-o por hora. Vendo meu colo, meus braços, meu acalanto, minha paciência e inventividade. Minha capacidade de brincar. Vendo 60% da minha jornada cuidando dos filhos dos outros para poder pagar as contas e criar meu filho.
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.: Vidas lado a lado
Minha mãe sempre sabe tudo. O que vamos comer, a hora de brincar, a hora de dormir, por que eu tenho cabelo preto, menos o porquê de meu pai ter ido embora.
Já perguntei mas ela não me conta. Ela diz que ele decidiu e pronto. Pronto como? O almoço sempre está pronto às 12:00 horas, será que ela quer dizer algo como isso? Deu 18:00 horas e ele quis ir embora?
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.: Vietnã
Mulher, como você se chama? – Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? – Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? – Não sei.
Desde quando está aqui escondida? – Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? – Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? – Não sei.
De que lado você está? – Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. – Não sei.
Tua aldeia ainda existe? – Não sei.
Esses são teus filhos? – São. -
.: A história de Roma [fragmento]
Decido ir embora. O que presenciei é íntimo, não me diz respeito e, ainda assim, põe-me em causa. Agarro nas minhas coisas. Fico em pé, colada à porta, à espera. Quando Laura volta, trá-lo ao colo, já só mimoso e flente, aninhado no pescoço dela, a mão pequenina enrolada numa mecha do cabelo da mãe.
— Já vais?! — pergunta, aturdida, os olhos muito abertos.
Tenho o casaco vestido, calço-me e seguro o trinco da porta. Desculpo-me, saio. A cada lanço de escada me sinto pior. Que atitude péssima. Mas não consigo voltar atrás nem lhe conseguirei dizer nada durante muito tempo.
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.: MAMA: um relato de maternidade homoafetiva [fragmento]
Amamentar tornou-se um hábito. Faz alguns dias que o Bernardo e a Iolanda nasceram, e eu tenho amamentado dezenas de vezes por dia. Colocar o peito para fora e oferecer a meus filhos é um gesto já incorporado à rotina. Mas a simbologia desse ato tem se transformado diariamente.
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.: Melhor não contar [fragmento]
Quando falo sobre ela para meus filhos, estou lhes mostrando como ela era ou como eu sou?
Quanto eu me pareço com ela?
Quanto eu sou ela?
Quanto ela sou eu?
Quanto resta de uma pessoa morta em nós?
Quanto de nós uma pessoa morta leva?
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.: Sexo e desorganização [fragmento]
Esta noite, minha filha e eu brincamos de sugar pontos do rosto uma da outra, meu queixo, a boquinha dela, minha bochecha, o pescoço dela. O prazer foi incrível, não só pelo prazer de sugar, o prazer dos lábios e da língua, mas também o joguinho, a troca furtiva de olhares, os ritmos se desdobrando e se desenvolvendo, a brincadeira de escolher onde, quando, com que força, e sempre a questão de quando parar.
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.: Sob a pele fina
Foi num 7 de novembro fresco e chuvoso que descobri que estava grávida. A menstruação estava atrasada uns seis dias, algo que não era incomum. Estranhei, no entanto, o gosto ruim que se instalara no fundo da minha garganta nos últimos dias. Não era um enjoo, não sentia ânsia de vômito nem náuseas. Era um sabor amargo que parecia brotar da base da língua e se alastrar pela boca. Salivava e sentia vontade de comer. Colocar substâncias de sabores variados na boca aliviava momentaneamente a sensação do gosto acre. Comia morangos – que nunca gostei muito –, enchia a boca de mexericas e mastigava o bagaço até que mais nenhum suco pudesse ser espremido e depois cuspia tudo na pia da cozinha, aliviada.