[ arquivo ]
-
.: Maternidade wapichana
A maternidade para a mulher wapichana acontece entre regras e tradições, o que garante um caminho saudável para gestar e criar seus filhos.
Escrevo aqui as memórias que trago desde a infância, de como vi minha mãe wapichana cuidar da sua maternidade, sempre acompanhada pela família. Mesmo com os trabalhos árduos do dia a dia, ela cuidava do seu corpo e da sua gestação. Observava atentamente a higiene, a alimentação e todos os rituais que envolviam o nascimento de cada um dos meus irmãos. Desde pequenos, ela nos transmitia os ensinamentos que aprendeu com nossas avós.
-
.: Sombras do parto
Quando uma mulher dá à luz, seu corpo se quebra em milhares de pedaços.
Seu coração salta bombardeando sentimentos, ainda… às vezes… e talvez… obscuros.
Incompreendidos. Bons e ruins.
O que mais lhe causa medo é a insegurança.
A certeza de que a partir daquele dia
tudo estará incerto.
Mil e uma coisas passam por nossas mentes, mas a dor não deixa.
Só a dor ocupa o lugar de destaque.
Só a dor te faz viver.
De repente, um alívio. -
.: Terra filha
A terra é só mãe?
Ela também é irmã?
Também dança, também cansa, também chora e se alegra?
A terra também é filha?
A terra cuida, mas também quer cuidado.
A terra tem um eu, tem uma identidade?
Tem uma identidade só?
A terra diz eu sou?
Tem uma consciência só?
E se a terra quiser ser só areias, folhas, gotas, sem dar a isso contorno algum? Sentido nenhum? Seria então uma mãe desnaturada? -
.: Se eu inexistisse
Mãe, eu tentei ficar quieta como me pediram
Eu silenciei minha presença
Tentei não fazer volume em nenhum cômodo
Comi sem fazer barulho e bem rápido, depois que todos comeram
Brinquei obrigada com filho de patroa, com filha de patroa
Fiquei em pé, no canto, sem tocar em nada, rezando para ser invisível
Ignorei os olhares de cima a baixo
Ignorei as ofensas
Ignorei as migalhas
Ignorei os brinquedos quebrados
Engolia minhas palavras com medo -
.: Não congelarei óvulos nem expectativas
te amo tanto criança
que não te quero
neste mundo
apesar de tantos apelos preocupados com
“quem vai cuidar de você na velhice?”
ou qual fralda de plástico é mais eficaz
entre as fraldas de plástico do mercadonão
congelarei
óvulos
nem
expectativas -
.: Brasil
Que faço com a minha cara de índia?
E meus cabelos
E minhas rugas
E minha história
E meus segredos?Que faço com a minha cara de índia?
E meus espíritos
E minha força
E meu tupã
E meus círculos?Extraído de Eliane Potiguara. Metade Cara, Metade Máscara. São Paulo: Global, 2004. -
.: Endometriose
as minhas pernas não existem mais
depois que o sangue escorreu
gota por gota ele desceu
pouco e insuficiente
para fazer transbordar o seu copo
cheio de silêncioas suas doses diárias não devem chegar
a uma quantidade satisfatória
pois algumas palavras como exagero
e frescura
continuam sendo ditas
nos melhores e mais esforçados
tons de deboche -
.: Meu amor
Chegaste assim… sem pedir licença.
Quando dei por mim, tu já estavas aqui, dentro de mim,Chegaste no rastro do bem-te-vi.
Quando dei por mim, tu já eras dono das minhas vontades.
Chegaste assim… sem pedir passagem.
Quando dei por mim, tu já estavas junto a mim,
Chegaste assim… sem bagagem. -
.: O pé de manga, Útero, Filha de artesã
Eu plantei um pé de manga para o meu neto. O neto do meu neto chupa as mangas do pé de manga que eu plantei. As abelhas também degustam as mangas do pé de manga que eu plantei. Eu, o pé de manga, meu neto e as abelhas alimentamos a terra que sustenta as raízes da mangueira. As raízes da mangueira estão na terra e nos meus fios de cabelo que são a continuidade da minha avó.
Minha avó sou eu, só que abelha, terra, manga
e o silêncio!